2.12.05

Fé e poder

Se eu posso? Tudo é possível para quem tem fé. Então o pai gritou: - Eu tenho fé! Ajude-me a ter mais fé ainda!
Marcos 9. 23 - 24

Esta é uma das frases mais paradoxais que eu encontro na Bíblia. Ela me impressiona todas as vezes que a leio, até porque percebo a luta que os tradutores do texto sagrado enfrentam para trazer a nós a profundidade da fala desse pai desesperado. Ele diz algo próximo disso: Eu creio, eu tenho fé. Mas me ajude porque eu sou incrédulo. Esse pai crê, mas é incrédulo. Nós somos atraídos por ele e o seu mistério porque nos identificamos plenamente no paradoxo, na dúvida, na fraqueza e na necessidade que temos de Jesus.
Todo o texto desenvolve-se em torno das seguintes relações: para se ter poder é preciso ter fé – ou seja, o poder é resultado da fé. Assim, sem fé, não se tem poder. Jesus está descendo o monte da transfiguração acompanhado por seus três discípulos mais íntimos. Ao chegar lá embaixo, toma conhecimento de um caso não tão incomum naqueles dias: Mestre, eu trouxe o meu filho para o senhor, porque ele está dominado por um espírito mau e não pode falar. (...) Já pedi aos discípulos do senhor que expulsassem o espírito, mas eles não conseguiram (Mc. 9. 17 – 18). A primeira coisa que se destaca é que os discípulos não foram capazes – não tiveram poder – para expulsar o demônio. Pela relação que se estabelece no texto, podemos concluir que eles não puderam porque não tiveram fé. Foram incrédulos.
Com base nisso, a gente pode entender que Jesus se dirige aos seus discípulos – e não à multidão de judeus – quando diz: Gente sem fé! Até quando ficarei com vocês? Até quando terei de agüentá-los? Tragam o menino aqui (Mc. 9. 19). É com a incredulidade de seus discípulos que Jesus se indigna. Depois de tanto tempo andando com Ele, depois de testemunharem tantos milagres, depois de verem em ação do enorme poder de Deus, eles ainda não crêem! Eles não podem expulsar o demônio porque são incrédulos. Não teria sentido, no contexto, Jesus exigir fé daqueles que não O seguem. Mas não tem sentido, para Jesus, não encontrar fé naqueles que andam com Ele.
É por isso que é louvável a honestidade com que o pai se manifesta. Ele já entendeu tudo. A fé é fundamental. Mas lhe falta. Não totalmente, porque Ele sabe que Jesus é capaz de ajudá-lo e de curar seu filho. Mas, como sempre acontece conosco, quando ele olha para a sua história e percebe que há tanto tempo o sofrimento é a única coisa que ele conhece, duvida. Teme pelo que será quando tudo mudar. Quando a gente olha para a nossa história e contemplar certas coisas que sempre foram como são, mesmo que saibamos que Jesus pode mudar a história, duvidamos. Mesmo que entendamos a relação entre fé e poder, não cremos. A atitude honesta desse pai é mais eficiente que a reação dos discípulos – aqueles que verdadeiramente deviam crer sem duvidar: Eu tenho fé! Ajude-me a ter mais fé ainda!
Estamos aqui. Diante de nós, há todo o mal a ser enfrentado. Há dores, sofrimentos, tristezas, circunstâncias complicadas. Há uma infinidade de coisas que precisam ser enfrentadas. Olhamos para elas com que olhos? Há uma relação: só teremos poder para enfrentar o mal – o poder que vem de Deus, o poder do Espírito – na medida em que tivermos fé – a consciência de que o Deus de amor é poderoso. Sem fé, não agradaremos a Deus. Sem fé, não poderemos resistir nas lutas contra o mal. Sem fé, não teremos poder para enfrentá-los. Como naqueles dias, Jesus ainda pode se voltar para nós, seus discípulos, com palavras duras: Gente sem fé! Até quando ficarei com vocês? Até quando terei de agüentá-los?, porque não conseguimos enfrentar o mal. É hora de se humilhar e é hora da atitude mais correta: Sim, Senhor, eu tenho fé! Mas me ajude a ter fé!

1.12.05

Impressões

Homem de Deus, o que o Senhor tem contra mim? Será que o senhor veio aqui para fazer com que Deus lembrasse dos meus pecados e assim provocar a morte de meu filho?
1 Reis 17. 18

O que as pessoas do mundo pensam acerca da igreja? Como elas vêem os cristãos? Que influência os crentes têm exercido na vida das pessoas? De vez em quando fica claro para mim que a principal impressão que os cristãos têm causado nas pessoas à sua volta é um sentimento que pode se resumir nas palavras da viúva de Sarepta ao profeta Elias: Homem de Deus, o que o Senhor tem contra mim? Será que o senhor veio aqui para fazer com que Deus lembrasse dos meus pecados e assim provocar a morte de meu filho?
Indo direto ao assunto, às vezes o povo de Deus me dá a impressão de que existe no mundo apenas para apontar o pecado dos que não conhece a Jesus. Parece que estamos no mundo no papel de juízes dos pecadores. Nossa presença ao seu lado só serve para amplificar, nas mentes e corações, o sentimento de culpa pelos pecados. Parece que a única palavra que conhecemos e partilhamos é a condenação. Apontamos os dedos contra os que falham – como se fossemos melhores – e os condenamos, sem apelação, ao inferno e condenação.
Muitas vezes percebo que os crentes sentem-se no mundo apenas com o papel de condenar, apontar aos pecadores o destino terrível que está reservado aos que não crêem. Somos arautos da pior das notícias. Somos instrumentos de dor, confusão e morte. Como se as pessoas – feridas, marcadas e doentes – viessem até nós e só pudessem encontrar mais dor. Elas precisam de alívio, mas lhes aumentamos o peso da dor. Eu já fiz e ainda faço isso. Parece que a melhor impressão que podemos causar nas pessoas é aquela que a viúva, em seu desespero, viu em Elias: o profeta estava ali para fazer lembrar o seu pecado e, por isso, matar o filho.
Causamos essa impressão quando, por exemplo, nos deparamos com alguém que se sabe pecador, está ferido pela sua culpa, e vem até nós esperando ouvir uma palavra de perdão. Ele espera o alívio de uma mão amiga, de um ombro companheiro, que pode dividir o impacto do sofrimento que tem no coração. Pecador, ouviu falar de um Jesus que disse: Venham a mim, todos vocês que estão cansados de carregar as suas pesadas cargas, e eu lhes darei descanso. Sejam meus seguidores e aprendam comigo porque sou bondoso e tenho um coração humilde; e vocês encontrarão descanso (Mt. 11. 28 – 29). Ouviu falar de um povo que se diz seguidor desse Jesus. Mas, ao se encontrar conosco, descobre que não somos muito diferentes dos fariseus dos dias de Jesus e, em vez de descanso, encontra em nós mais acusação, mais sofrimento.
Estou tentando dizer como vejo a fala da viúva de Sarepta. Entendo que essa é a forma como os crentes são vistos por boa parte da população. Somos entendidos como um grupo de pessoas arrogantes, que nos sentimos os mais “santos” e, por isso, apontamos os pecados, erros e dores dos demais. Em vez de alívio, encontram sofrimento e acusação ao nosso lado. A mesma impressão que teve a viúva quando viu seu filho morrer, enquanto hospedava o homem de Deus: Homem de Deus, o que o Senhor tem contra mim? Será que o senhor veio aqui para fazer com que Deus lembrasse dos meus pecados e assim provocar a morte de meu filho?
Mas é na mesma história que Elias ensina que papel devemos exercer diante do sofrimento humano. Mesmo que aquela mulher estivesse entendendo a presença do homem santo como a causa do sofrimento decorrente da morte do menino, Elias sabe que seu papel é transformar as situações de dor e sofrimento em momentos de paz e benção. Ele está ali para ser instrumento da paz de Deus na realização de milagres que aliviem o sofrimento das pessoas e tragam a esperança de volta. Por isso, ele pega o menino, leva-o ao seu quarto, ora a Deus e vê o milagre da ressurreição acontecer.
Se Deus nos põem presentes diante do sofrimento não é para que alimentemos a impressão que os outros têm de que só existimos para acusar e aumentar a dor. Se estamos no caminho de pessoas carregadas e marcadas por pecado e dor é para que sejamos instrumentos de transformação na vida das pessoas. É para que levemos os seus filhos mortos para os nossos lugares de oração e intercedamos a fim de ver-se realizarem milagres, tão ou mais tremendo que uma ressurreição. Estamos no mundo não para causar a impressão de que só sabemos acusar, mas para sermos instrumentos que tragam a alegria, o alívio, o descanso e a esperança de volta à vida das pessoas. Elias nos ensina isso.

30.11.05

Não é filme

E o segundo mais importante é parecido com o primeiro: “Ame os outros como você ama a você mesmo”.
Mateus 22. 39

Esses últimos dias tenho pensado de novo sobre nossas superficialidades. Especificamente, fui conduzido a refletir sobre a forma superficial como nos relacionamos com as outras pessoas. Nossas relações não são conduzidas pela necessidade de nos conhecermos melhor, mas apenas são encaradas como formas descartáveis de “uso” das pessoas que são interessantes temporariamente aos nossos propósitos; pessoas que ficam sem serventia para nós após usadas. Penso que o pior desse processo é que nos passa de forma inconsciente: não somos capazes de refletir sobre tudo isso, por isso nos parece a única alternativa possível de vida.
Nossa superficialidade, desse modo, nos faz encarar as pessoas à nossa volta como se fossem personagens de filmes interpretados por atores. Apenas nossas vidas são reais de verdade. As pessoas à nossa volta não sentem, não sofrem, não vivem de verdade. Como se fossem esses personagens, podem ter suas vidas destruídas agora porque seus atores voltam em outras estórias, em outros filmes, contando outros finais, mais felizes, alguns anos mais tarde. Parece-me que somos capazes de magoar e machucar severamente quem está do nosso lado porque não conseguimos ver que ali está um ser humano, com uma história pessoal, com uma vida, com sentimentos, sonhos e emoções. Para nós, o nosso próximo não deve ser alguém de verdade. A vida é como um filme, então, cujo diretor sou eu, única pessoa de verdade, em função de quem todos os outros personagens existem. Podemos matar pessoas, em vários sentidos, porque para nós elas não passam de linhas escritas em algum roteiro.
E o segundo mais importante é parecido com o primeiro: “Ame os outros como você ama a você mesmo”. Dentro desse contexto, essas palavras de Jesus poderiam ser lidas como uma convocação que o Mestre nos faz a que nos lembremos que os outros, à nossa volta, são tão reais, são tão pessoas, quanto nós mesmos. É um desafio a que tiremos os nossos olhos do próprio umbigo. É um desafio a que saiamos de nós mesmos e passemos a nos importar com os que nos cercam. É um desafio a que aprofundemos a nossa vida, aprofundando nossas relações interpessoais em um nível em que nos percebamos, e ao próximo, como pessoas.
Nesse desafio, se implica um aprofundamento real de nossa relação com Deus. Porque só é possível ter uma relação de verdade com o Pai a partir do instante que temos uma relação de verdade com os próximos. Se alguém diz: “Eu amo a Deus”, mas odeia o seu irmão, é mentiroso. Pois ninguém pode amar a Deus, a quem não vê, se não amar o seu irmão, a quem vê (1 Jo. 4. 20).
Viver a vida plena de Jesus passa por ter consciência de que as pessoas à nossa volta são reais de verdade. Merecem respeito, merecem amor, merecem consideração. Viver a vida de plena de Jesus passa por aprofundar o relacionamento com o próximo. Conseqüentemente, aprofundar o relacionamento com Cristo. E usufruir toda a riqueza e inesgotável profundidade do amor que Deus manifesta por meio de Cristo.