9.5.15

Sem destino

Esta semana, meu amigo Thiago de Goes perguntou em um grupo de whatsapp do qual fazemos parte o que nós diríamos a nós mesmos se pudéssemos voltar 20 anos no tempo e nos encontrarmos com nosso eu adolescente.
Respondi: "Você não é um cadáver".
Há 20 anos costumava falar assim quando me acusavam de ser intransigente. Para justificar minha defesa apaixonada por alguns pontos, dizia, no entanto, que minha posição não era imutável. "Não sou um cadáver para ter rigidez cadavérica", complementava.
Dizer isso hoje para o meu eu de 20 anos atrás tem outro significado muito distinto. Se há 20 anos eu queria dizer que minhas posições não eram imutáveis, hoje eu gostaria de me dizer que não era um morto, que valia a pena viver.
Descobrir a vida provoca dores. É engraçado imaginar que ao descobrir que não se tem rigidez cadavérica, o corpo, rígido, resiste na forma de torcicolos, curvaturas da coluna, dores ciáticas, etc. O corpo que se acostumou a se ver como morto sofre dores quando começa a se encarar vivo diante da vida.
Há 20 anos eu era preso no destino. E o destino mata a vida. Era um cadáver e não sabia.
Não deve ter sido coincidência que uma das músicas que dançamos na abertura dos jogos internos em 95 no Neves começava afirmando que "a cigana leu o meu destino" e ecoava a pergunta: "o que será o amanhã? Como vai ser o meu destino?"
O destino é essa prisão. Ele me condiciona a encarar a dor do passado como inevitável e consequência de meus atos conforme a sina e me faz ver que o futuro já existe, já foi escrito, vai acontecer não importa o que eu faça. Diante do destino, o meu corpo é cadáver. Diante do destino, a rigidez da vida é cadavérica e não importa o ato - o futuro já aconteceu.
Uma vida assim não é vida. O corpo é morto diante disso. Não há esperança, mas somente espera pelo que já está destinado na sina.
Só é possível esperançar quando se sabe que o futuro não existe. O futuro não está lá. O destino não está escrito. A vida não é sina.
Só é possível esperança, fé e vida quando vivemos o tempo presente. Quando sabemos que o futuro é construído pelos nossos atos.
Só é possível ser vivo, e não um cadáver, quando se sabe que o passado constitui minha pessoa, mas não é resultado de uma tragicidade inevitável. A dor, no passado e no presente, é para ser vivida. Viver com esperança é abrir mão de qualquer cinismo trágico, filho do destino, que acha que não há mais nada a fazer para se mudar a vida. Quando dói o infortúnio, o experimentamos plenamente - não fugimos dele nem tentando explicá-lo, nem tentando encontrar suas causas e razões, nem tentando tornar bom o que é, por si, mal e doloroso. Viver com esperança é sentir a dor sem se submeter à tragicidade da vida, é olhar o futuro de maneira crítica, mas positiva. É desejar construir o melhor. É caminhar rumo à utopia.
Tudo isso para mim só é possível quando entendo que o futuro não existe, quando não sou mais um cadáver, quando não me submeto mais a qualquer rigidez cadavérica. Para caminhar livre do destino, preciso olhar com fé o passado, viver o presente e esperançar o futuro.

8.5.15

Fé e herança espiritual

Ao me converter em 1996 o mundo evangélico era notoriamente anticatólico. O anticatolicismo é fruto da nossa herança evangelística e missionária norte-americana do século XIX.
Pouco a pouco, ele foi se desmanchando para mim.  
Hoje, em um momento em que experimento o que Tomás Halík chama de "cristianismo de segundo fôlego" - uma redescoberta da fé que não é um regresso mas um passo mais profundo, sinto-me contemplado, abençoado e desafiado principalmente por autores católicos.
Seja a simplicidade profética de uma Jose Comblin, seja a mística ético-ecológica de Leonardo Boff, seja a espiritualidade profunda de Tomás Halík.
Halík, tcheco, foi descoberto por meu amigo pastor Mardes Silva. Deparei-me com dois de seus livros editados pela Paulinas de Portugal que Mardes comprou: A noite do confessor e O meu Deus é um Deus ferido.  
Acabo de ler "A noite do confessor". Saio dessa experiência de leitura com a fé renovada e com uma sede por uma espiritualidade ainda mais profunda.
E sempre com a coragem renovada em falar de meus irmãos católicos fico pensando em como é a cabeça de uns tantos líderes e teólogos evangélicos que eu conheço que, lendo e aprendendo com padres e teólogos católicos, ainda consideram ser verdadeira à sua condenação ao inferno por idolatria.
E tal hipocrisia ou alienação não os condenam?
E quantos televangelistas ou representantes das bancadas políticas neopentecostais continuam tal discurso anticatólico sem perceber que na vida dos crentes que seguem o Papa Francisco o evangelho faz mais sentido e dá mais frutos que em suas próprias vidas?
A seguir, trechos que me inspiraram do último texto ("Cristianismo de segundo fôlego") da obra de Halík "A noite do confessor"





6.5.15

Esperançar

Quando eu tinha uns doze anos, houve um concurso de redação lá no Colégio das Neves. O tema foi "Se eu fosse Deus".
Devo ter o texto guardado ai em algum lugar, mas lembro que me colocava dizendo que se eu fosse Deus reiniciava a Criação. E concluía por dizer que não poderia ser Deus dada minha condição humana.
Um dos ensaios de Tomás Halík em "A noite do confessor" falava sobre o peso de querer ser Deus e, assim, ter controle e definição sobre, não somente a própria vida, como também a vida dos demais.
Se eu fosse Deus, além do peso da vida, não me restaria muita paciência para não começar de novo a cada decepção com a humanidade.
Penso que isso passa pela mente de Deus a cada vez. Mas sei que nos resta a esperança.
A esperança é o que alimenta qualquer incipiente fé. Não é nada no mundo físico, concreto ou real.  É a esperança que faz a vida valer a pena. Sem ela, não haveria nada além de um cinismo trágico no lugar da fé.
É esse cinismo que nos empurra ao sentimento de que tudo é imutável, de que não há nada a ser feito, de que o fim já chegou e de que nada melhorará. O cinismo trágico de traveste de uma fé tolamente alienante que nos empurra para fora da vida. Essa fé nos faz viver em função de uma eternidade que somente a morte inicia. Não há jeito, resta-nos a morte e esperar o céu.
O cinismo trágico pode ser ateu e se traduzir ou em um hedonismo radical (se nada pode mudar, resta-nos gozar a vida enquanto é tempo) ou num desespero de morte - e daí o suicídio.
Somente a esperança, um olhar esperançoso, a utopia podem nos curar de sermos cínicos a esse ponto. Reconheceremos a magnitude do cenário ruinoso, mas não abriremos mão de esperar e lutar com esperança para que tudo mude. Seja na dimensão utópica da fé ("o Reino de Deus está entre nós") seja na luta secular por mais justiça e paz. 
As utopias se enlaçam e nos fazem "esperançar" mais que esperar.