Muita fé religiosa e muita convicção teológica se elabora a partir da ideia de que existe um Deus justo, cuja justiça tarda, mas não valha.
Justiça, aqui, sempre entendida como retributiva, como sendo resultado de um sistema de leis que, quando quebradas, precisam sofrer sanções.
A própria religiosidade sacerdotal e legalista do AT se elaborou sobre esse ponto.
Elaborações teológicas posteriores continuaram neste caminho. Teologias cristãs e protestantes afirmaram que o sacrifício de Jesus era necessário para resgatar os eleitos da condenação da lei. A justiça tinha de ser feita, redributiva como se crê, para que a graça e o amor fossem alcançados.
Ainda que tal concepção tenha sentido numa lógica humana, contradiz por inteiro a noção de graça e de amor infinitos e imensuráveis. Se olho para Jesus, sua encarnação (Deus se fazendo um de nós), sua vida é sua morte falam de um Deus que, se for justo, não o será para garantir que recebamos benefícios ou punições a partir dos nossos atos. O Deus que se encarna em Jesus ao se tornar um de nós já rompeu essa ideia na base. Ele vem até nós, nos amar, perdoar e salvar de graça. Não exige nenhuma expiação no lugar.
Mas o texto sobre o qual pensei nesses dias emerge da tensão da teologia do templo com a teologia viva e profética do povo do AT. É Jó.
Jó é um estrangeiro. Não é judeu. Para a teologia judaica do templo só no templo do Deus de Jerusalém era possível conhecer a Deus.
Mas quando começamos o texto, lemos Deus dizer duas vezes que Jó é um homem justo, correto, santo. O texto nos prepara: Jó vai sofrer mas não é culpado. O sofrimento é contingência da vida humana, não é resultado de seu pecado.
Seus quatro amigos (começam três e depois se introduz Eliu do nada) passam o livro todo tentando convencê-lo que sofre porque pecou contra Deus, porque Deus é justo e, portanto, qualquer sofrimento ou dor só pode nos abater como resultado de nossos próprios erros. Um Deus cuja justiça é retributiva. Esse Deus aparece na teologia calvinista e no Kardecismo, por exemplo.
Mas o leitor de Jó sabe que seus amigos estão errados. Jó nada fez para merecer sofrer.
Aí, no fim do livro, depois da restauração,Deus deixa isso ainda mais evidente:
“Depois que acabou de falar com Jó, o Senhor disse a Elifaz, da região de Temã: — Estou muito irado com você e com os seus dois amigos, pois vocês não falaram a verdade a meu respeito, como o meu servo Jó falou.”
Jó 42:7
O que os amigos de Jó falaram não é a verdade a respeito de Deus. Deus não é esse da Justiça Retributiva que eles defenderam.
Para quem pensa em um Justiça divina na base do "tarda, mas não falha", "o que a gente faz volta para a gente", o Deus revelado na Bíblia é injusto. Quem pensa em Justiça divina na base do Karma tem dificuldade em pensar num Deus que não é vingança, punição ou revanche.
Justiça para o Deus que a Bíblia revela é igualdade.
O enfrentamento e a destruição de todas relações de poder de exploração e desigualdade. É essa justiça a base de julgamento divino.
Se você espera um Deus que aja na base do "aqui se faz, aqui se paga", Jó desfaz sua ilusão.
E sei que é duro sair de tão ilusão porque deixar de crer na Justiça de Deus dessa forma exige de nós um triplo movimento: encarar a vida, assumir a responsabilidade por ela e se tornar agente da Justiça de um Deus que se encarnou para que conhecêssemos o caminho. O outro caminho, da fantasia de Deus e da Justiça Retributiva, é mais tranquilo e apaziguador porque exige de nós pouco mais do que seguir um manual de instruções.
“Antes eu te conhecia só por ouvir falar, mas agora eu te vejo com os meus próprios olhos.”
Jó 42:5