31.12.16

Médico

Jesus escutou a crítica e reagiu: “Quem precisa de médico: quem é saudável ou quem é doente?"
Marcos 2.17



Quem pede ajuda é quem reconhece que não é capaz de fazer algo ou mudar uma situação sozinho ou, especificamente, sem o auxílio daquele a quem se demanda a ajuda.

Pedir ajuda é, portanto, um duplo reconhecimento. De um lado, ao pedir ajuda reconheço minha fragilidade.

Por outro, reconheço que o outro tem, sobre mim, um poder que eu não tenho. Peço ajuda de quem pode ou sabe mais que eu.

Na época que estudava para o vestibular, há duas décadas, montamos um grupo de estudo em que nos ajudávamos mutuamente - naquilo que eu era mais forte que meus colegas, eu os ajudava. No que eu era mais fraco, recebia ajuda. Lembro que uma amiga me ensinava biologia, matéria em que eu me via pior.

Ajudar é um ato de amor, carinho, atenção, ainda que possa ser mobilizado por motivações as mais toscas ou egoístas. No entanto, em geral, ajudo porque me importo com o outro.

E quem não precisa de ajuda? Quem se sente bem, autossuficiente, saudável, forte. Não precisa de ajuda aquele que olha para si e para o outro e não vê, no outro, nada que lhe possa ajudar.

Jesus era constantemente criticado por andar ao lado da escória da sociedade. No texto de Marcos 2, ele foi à casa de um cobrador de impostos e os representantes do sistema religioso o criticam por isso.

A resposta de Jesus é de uma riqueza de graça e vida ímpar. Ele está ali para ajudar pessoas doentes. E naquela casa, cada um e cada uma, sabe que é alguém que precisa de ajuda. Reconhece sua fragilidade, sua culpa, sua dor, seu pecado - sabe que Jesus pode ajudá-lo e curá-lo.

A esses Jesus pode socorrer - os que sabem que precisam de socorro, aqueles que carregam o peso de dor do sofrimento em que se encontra, quem entendeu que não vai se livrar do mal que o aflige sozinho.

Mas Jesus não pode ajudar quem não sabe que não precisa de ajuda. Não existe ninguém tão saudável que dispense o socorro do Senhor - mas existe gente tão arrogante que se sinta tão saudável que não precise do Mestre.

Na cena de Marcos, os líderes religiosos assumem uma postura crítica contra Jesus e os cobradores de impostos. Ao agirem assim, se colocam como moralmente superiores àqueles pecadores. Os moralmente superiores são salvos, santos, curados, saudáveis. Ao avaliar daquela forma aqueles com quem Jesus anda, é como quem dissessem: “Somos perfeitos, tão superiores a vocês que podemos julgá-los”.

Quem não se sente doente, não procurará um médico porque não precisa.

Quem se sabe enfermo reconhece tal necessidade.

Aí reside a diferença entre andar ou não com Jesus. Quem se sente espiritualmente perfeito, santo e saudável, andará sempre para mais longe de Jesus. Quem sabe de sua própria fragilidade saberá que somente em Jesus há cura e restauração para a sua vida.

Quem sabe que é frágil, sabe que não pode abrir mão de andar com o Médico dos Médicos. Quem não se reconhece doente, é autossuficiente demais para fazer algum movimento na direção de Jesus. Sua autossuficiência será uma barreira entre ele e o Mestre.

Que em 2017 nos saibamos todos doentes em busca do Médico.

30.12.16

Vida e morte

Ele não está mais aqui

Mateus 28. 6



Quando Paulo, no relato do livro de Atos, chega à Atenas, se impressiona com a intensa religiosidade da cidade, repleta de altares para deuses diversos, inclusive um deus desconhecido, do qual o apóstolo se aproveita para anunciar Jesus.

De modo semelhante, quando chegamos a uma cidade como Salvador e suas centenas de igrejas históricas ficamos impressionados e sensibilizados. Em Salvador, a forte presença visual das religiões de matriz africana também deixam sua marca indelével em nossas almas.

O ser humano é religioso. Ele sente a necessidade de transcender a si e aos seus próprios limites.

Diante do limite extremo que é a morte, o ser humano precisa encontrar uma resposta que lhe possibilite seguir vivendo.

Diante de limites proporcionados pelo sofrimento, buscamos sentido e significado.

Quando sentimos as maiores dores, queremos saídas.

As saídas buscadas e encontradas podem não ser religiosas e, assim mesmo, darem conta das nossas necessidades. Ainda que sejam saídas espirituais - no sentido de transcender os limites, não na crença em Deus ou deuses -, podem ser saídas que abdiquem do metafísico, do que vai além do histórico e material.

As saídas, em geral, no entanto, são religiosas.

Lembro do dia que conheci um senhor que enfrenta um violento câncer e, no meio da dor, tem buscado seu alívio em um centro espírita, ao mesmo tempo que ouve a pregação de um padre no rádio e visita uma missa de cura em uma igreja de Natal. Ao falar sobre minha igreja, interessou-se em conhecer um de nossos cultos.

O fenômeno religioso é ancestral. Ele começou em tempos pré-históricos e foi adquirindo características e tecnologias cada vez mais complexas ao longo dos milênios. Para termos a religião como a temos no século XXI muita coisa evoluiu por toda a parte.

No entanto, nem toda religião responde às questões mais fundamentais da vida humana. Aliás, nem toda religião responde com vida às nossas demandas e, penso, essa é uma questão muito mais pessoal do que ligada a qualquer sistema de fé em que tenhamos nos enredado. É uma escolha nossa optar pela vida ou pela morte até em termos de fé.

Muitos religiosos fazem opção pela morte, mesmo entre os cristãos. Ou, antes, principalmente entre os cristãos. Só encontram um Jesus morto na cruz ou vão atrás de seu corpo no sepulcro. Só pensam naquilo que acham que lhes acontecerá depois de sua morte. Alienam-se da vida em busca de um Deus que não vive ou não tem o que lhes dizer acerca da vida. Gastam seu tempo pensando em tudo, menos vivendo. Vivem além da vida.

As mulheres foram no domingo de Páscoa ao sepulcro em busca de um Jesus morto, em uma fé morta, um Deus que não estava mais na vida.

O anjo lhes diz: “Ele não está mais aqui”. Ele não está morto.

Não encontramos Jesus em uma religião que diga muito sobre a morte. Não o encontramos em um sepulcro. Não vivenciamos uma fé viva na perspectiva de um Deus morto, de um Jesus enterrado.

“Ele não está mais aqui”.

A fé deve nos convidar à vida, nos conduzir a ela, nos fazer experimentar e mergulhar cada vez mais na vida. Jesus não está no sepulcro. Ele está vivo.

A nossa opção de fé pode ser pela vida. Pode ser para vivermos. Pode ser para que nossa intensidade se derrame em mais e mais vida e compromisso com o viver.

Porque, diante do sepulcro e da morte, podemos dizer de Jesus: “Ele não está mais aqui”.

Que Ele esteja em nossas vidas.

29.12.16

Poder

Quando desceram a montanha para se reunir aos outros discípulos, viram-se rodeados por uma multidão imensa, que debatia com os líderes religiosos. Assim que viu Jesus, o povo ficou animado. Correram para ele e o saudaram. Ele perguntou: “O que está acontecendo? Por que toda esta agitação?”.
Um homem da multidão respondeu: “Mestre, eu trouxe meu filho, que foi deixado mudo por um demônio. Toda vez que o demônio se apossa dele, joga-o ao chão. O menino baba, range os dentes e fica rígido como uma tábua. Falei com teus discípulos, esperando que o libertassem, mas não puderam”.
Jesus suspirou, inconformado: “Mas que geração! Vocês não conhecem Deus! Até quando vou ter de aguentar esse tipo de coisa? Quantas vezes ainda vou ter de passar por isso? Tragam o menino aqui!”. Eles o trouxeram. Quando o demônio viu Jesus, apossou-se do menino, que ficou babando e se contorcendo no chão.
Jesus perguntou ao pai do menino: “Há quanto tempo isso acontece?”.
“Desde que era pequeno. Muitas vezes o demônio o joga no fogo ou no rio para matá-lo. Se o senhor puder fazer alguma coisa, tenha misericórdia e nos ajude!”.
Jesus disse: “ ‘Se eu puder’? Tudo é possível para quem tem fé”.
Assim que Jesus disse essas palavras, o pai do menino exclamou: “Eu creio, mas me ajude a vencer as minhas dúvidas!”.
Percebendo que a plateia ficava cada vez maior, Jesus deu ordens expressas ao espírito maligno: “Espírito mudo e surdo, eu ordeno: sai dele e não volte!”. Com muito estardalhaço, o espírito saiu. O menino estava pálido como um defunto, de modo que as pessoas começaram a dizer: “Ele está morto”. Mas, tomando-o pela mão, Jesus o levantou. O menino ficou em pé.

Marcos 9. 14-27


Pensei sobre esse texto hoje.

Jesus desce do monte da transfiguração e se depara com uma confusão: um pai levou seu filho epiléptico para ser curado pelos discípulos, que não tiveram sucesso.

Independente do relato, Marcos constrói uma relação óbvia que é um desafio para nós. Ele estabelece dois pares paralelos que apontam direto para nós, no século XXI:


Poder ---------------------- Impotência

Fé --------------------------- Incredulidade


No texto é evidente: quem tem fé, pode. Quem não tem, não pode.

Se o senhor puder fazer alguma coisa, tenha misericórdia e nos ajude!”.

Jesus disse: “ ‘Se eu puder’? Tudo é possível para quem tem fé”.

Por isso, diz o pai: “Eu creio, mas me ajude a vencer as minhas dúvidas!”.

O que é mais desafiador nesse texto, a meu ver? A quem você acha que Jesus dirige essas palavras: “Mas que geração! Vocês não conhecem Deus! Até quando vou ter de aguentar esse tipo de coisa? Quantas vezes ainda vou ter de passar por isso?”?

Quem não pode fazer nada em favor do menino doente? Quem foi impotente por ser incrédulo?

Não foi a multidão: foram os discípulos.

É dos discípulos que Jesus está falando.

É de mim e de você.

Quantos deixamos de ajudar porque não cremos e, sem crer, não podemos?

Alguns domingos atrás, eu fui a Igreja e, pela primeira vez, escrevi um pedido de oração com duas questões - uma delas, a cura da depressão. Quem me conhece de perto sabe o que eu penso sobre pedidos de oração assim.

No entanto, eu cri: algo ia acontecer com o meu pedido.

Quando sai da igreja naquela noite e fui lanchar com uma turma de amigos, não senti nenhum prazer naquilo - o que me incomodou profundamente.

“Não aguento mais essa doença. Quero ficar bom”, disse.

Escrever o pedido de oração foi o primeiro passo - de lá para cá, tudo só fica mais claro, leve, luminoso. Em paz.

Por isso, faça como o pai, em resposta a Jesus:

“Eu creio, mas me ajude a vencer as minhas dúvidas!”.

Apenas um carpinteiro

Não demorou, porém, já estavam falando mal dele: “Ora, ele é apenas um carpinteiro — o filho de Maria. Nós o conhecemos desde menino. Conhecemos também seus irmãos, Tiago, José, Judas e Simão, e suas irmãs. Quem ele pensa que é?”. Mesmo sem conhecê-lo direito, eles o desprezavam.

Marcos 6. 3


Nós somos preconceituosos.

Lembro de ter chegado ano passado em São Paulo, no aeroporto de Guarulhos. Enquanto esperava o ônibus da companhia aérea que me levaria até Congonhas, um moço se aproximou da fila pedindo ajuda. Levava nas costas um saco plástico com suas coisas.

Era uma segunda pela manhã e na noite anterior ele dormira sob a marquise de uma igreja em Guarulhos. Envolvido com tráfico de drogas, alguns meses antes, com a vida ameaçada, pegou os últimos lucros e se internou numa clínica evangélica de recuperação de dependentes químicos. Era tudo o que tinha - e tudo o que sobrou quando saiu da clínica estava naquele saco.

Saiu de lá, também, convertido, mas ainda passando apertos com a fome e, às vezes, com a abstinência.

Na noite do domingo, participou do culto naquela igreja, sendo relativamente bem recebido. Ao fim do culto, porém, ninguém se importou de verdade com ele e suas necessidades. Todos se foram e ele foi ficando. Ajeitou-se para dormir ali mesmo.

Tudo o que queria era conseguir retornar à sua cidade natal para rever a mãe.

Em menos de dez minutos de conversa com o rapaz, eu fui abençoado. A minha sensação era de que diante de mim estava Jesus em pessoa.

Nós somos preconceituosos.

Olhamos para alguém na situação daquele rapaz e o desprezamos no ato. No que seriamos abençoados em contato com ele? Eu fui muito abençoado.

Lembro de uma época em que numa das igrejas das quais fui membro, todo domingo à noite um fedido morador de rua sentava-se em um dos bancos para assistir o culto. Ninguém sentava-se ao seu lado e, algumas vezes, ainda havia um movimento para retirá-lo do templo. Não perguntávamos seu nome, não o apresentávamos como visitante.

Uma noite recebemos um deputado federal no culto. Toda honra foi dada àquele visitante, contrastando com aquele pobre andrajoso que estava no mesmo templo, no mesmo culto.

Jesus era de Nazaré - uma vila de artesãos tão desprezível que somente depois do ano 100 da era cristã constou nos mapas do Império Romano. Literalmente um vilarejo tão periférico que estava fora dos mapas.

A profissão de artesão, carpinteiro, só estava acima dos mendigos na escala social da Palestina nos dias de Jesus, lado a lado com os pescadores.

Um vila periférica na periferia do mundo. Uma profissão subalterna.

São os moradores dessa vila que desprezam Jesus - “apenas um carpinteiro”.

Esse homem, “apenas um carpinteiro”, é em quem “habita em corpo humano toda a plenitude de Deus” (Cl. 2. 9, NVT).

Preconceituosos, os conterrâneos de Jesus desprezaram o próprio Deus encarnado por seus preconceitos, seus esquemas de mundo, suas concepções teóricas e conceituais acerca da vida, que enquadravam o seu viver, não permitiam reconhecer nada relevante em um carpinteiro nazareno. “Quem ele pensa que é?”

Será que você já foi desprezado desta maneira? Já foi enquadrado e classificado assim? É ruim, não é?

Acho que nada pode apagar a dor e o constrangimento de ser vítima assim de preconceito, mas a experiência de Jesus pode nos ajudar a significar de uma maneira nova tal sofrimento.

Jesus de Nazaré, o Deus encarnado, Salvador do mundo, sofreu o mesmo que nós.

Quando nos sentirmos assim, quando fizerem o mesmo conosco, sabemos que o temos ao nosso lado. Ele nos conhece e à nossa dor. Seu cuidado, seu amor, seu carinho, nos ajudarão a entender: somos mais do que aquilo que o preconceito, que o enquadramento dos outros, dizem de nós. Somos mais do que a figura que pintaram da gente. Somos mais do que aquilo a que nos querem submeter.

Jesus é mais do que “apenas um carpinteiro” de Nazaré.

Somos mais que os rótulos dizem.

28.12.16

Toque

Jesus estendeu a mão, tocou o leproso e disse: “Quero! Fique limpo!”.
Mateus 8. 3


A força de um toque amoroso derruba barreiras de diversas ordens.

Em dias de intenso sofrimento, um toque, uma manifestação de amor, um “eu te amo”, afastam as mais pesadas nuvens, fazem ressurgir o mais brilhante sol, alimentam a alma da energia suficiente e necessária para, retomada a força, enfrentar o sofrimento e a dor.

Recentemente, em um dia de intensa angústia, sai com um amigo e sua turma. Não conhecia ninguém, mas uma das pessoas dispensou tanto afeto e carinho para mim, em um abraço e em um toque, que me senti em parte refeito para seguir a vida, apesar de tanta dor que, então, me abatia.

Algumas semanas depois, uma velha e querida amiga, parece que adivinhando a angústia me abalava numa manhã de segunda-feira, me disse singelamente que me amava. Emocionei-me e sair para resolvi a vida com um sorriso nos lábios.

O toque, a palavra, curam a alma.

Segundo a lei, os leprosos eram considerados impuros. Além da doença, eles tinham de enfrentar o isolamento social: ninguém podia lhes tocar e eles eram obrigados a viverem fora das cidades, totalmente cobertos e gritando (“Impuro! Impuro!”) sempre que alguém se aproximava.

Tocar um impuro é, para a lei, se tornar impuro.

Por isso, mais adiante no capítulo (8. 17), o evangelista relembra as palavras de Isaías sobre o Servo Sofredor:


Ele levou nossas doenças,
Ele carregou nossas enfermidades.


Elas não se relacionam à cruz, mas se relacionam ao toque que manifesta amor e cura, e que torna Jesus ritualmente impuro.

Essa era a sua prática: tocar os impuros para manifestar seu amor e poder de cura. Assim, ele levava sobre si sua impureza.

Os evangelhos de Mateus (9), Marcos (5) e Lucas (8) relacionam duas histórias - a ressurreição da filha de Jairo, que tinha doze anos, e a cura da mulher que sofria com o fluxo de sangue há doze anos. A mulher, impura segundo a lei há doze anos, enfrenta a multidão e toca Jesus, tornando a ele e aos demais ritualmente impuros.

Quando Jesus chega à casa de Jairo, encontra a menina morta e toca-a, mandando-a levantar. Tocar um cadáver também era algo que deixava alguém impuro.

Jesus me ensina que o toque e a palavra de amor são curativos e que, para curar, fazem-nos levar sobre nós a impureza que vemos nos outros.

Ao curar o leproso, Jesus o toca!

Como nos toca para curar-nos e assumir nossa impureza.

Como nos convida a tocar os outros e partilhar a sua impureza em direção da verdadeira cura.


27.12.16

Família

Esta é a árvore genealógica de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão:
(…)
Judá foi pai de Perez e de Zerá (a mãe deles foi Tamar),
(…)
Salmom foi pai de Boaz (a mãe de Boaz foi Raabe),
Boaz foi pai de Obede (a mãe de Obede foi Rute),
(…)
Davi foi pai de Salomão (a mulher de Urias foi sua mãe),
(…)
Jacó foi pai de José, marido de Maria,
Maria que foi mãe de Jesus,
Jesus, que foi chamado o Cristo.

Mateus 1. 1, 3, 5, 6, 16


Nem todo mundo tem uma família perfeita. Talvez nenhum de nós tenha. Possivelmente, dentre os nossos antepassados podem haver nomes que não devem ser mencionados, pessoas cujas histórias não devam ser contados às crianças. As famílias têm seus excluídos, não apenas no tempo presente mas especialmente no passado, na história.

Há raízes em nossas famílias que, por vergonhosas ou sujas, foram esquecidas, apagadas. Anselm Grün diz em seu livro “Raízes" que podemos santificar nossas famílias porque Jesus fez isso com a sua própria árvore genealógica.

Acho que a árvore genealógica construída por Mateus no início de seu evangelho é capaz de nos ensinar mais que isso sobre a graça de Deus, nossas famílias e o evangelho.

Sempre me chamou atenção naquele texto o fato de que, em um ambiente extremamente centrado nos homens e com as mulheres encaradas de uma maneira tão subalterna, há cinco mulheres na genealogia de Jesus. E, o melhor, não são mulheres quaisquer - são pessoas que, naturalmente, seriam vítimas dos piores preconceitos sociais e familiares. Não eram, digamos, mulheres honoráveis do ponto de vista social. Eram personagens que, possivelmente, muitas famílias gostariam de excluir de seu passado.

A primeira é Tamar (Gn 38). Nora de Judá, Tamar ficou viúva de dois de seus filhos por causa da lei do levirato. Temendo perdendo outro filho, Judá esqueceu a nora. A nora não esqueceu o sogro. Fez-se passar por prostituta, fez sexo com o sogro e dele engravidou. Em suma, Tamar se prostituiu, seduziu e enganou o sogro, sendo mãe de dois filhos com ele.

A segunda mulher que aparece na genealogia de Jesus em Mateus é a prostituta Raabe, de Jericó (Js 6). Se Tamar se prostituiu uma vez, para enganar o sogro, Raabe tinha a prostituição como seu ganha-pão, talvez sendo dona de uma casa que oferecia tais serviços em Jericó, antes de sua tomada por Josué e os hebreus saídos do Egito. Raabe, a prostituta, seria excluída da genealogia de muitos dentre nós.

Outra mulher que surge na genealogia de Jesus é, segundo o livro que leva seu nome no Antigo Testamento, avó do rei Davi. É a moabita Rute. Por que Rute seria, provavelmente, excluída das raízes genealógicas de muitas famílias judaicas? Por sua origem étnica:

Nenhum amonita ou moabita poderá entrar na congregação do Eterno, até a décima geração, tampouco seus filhos. Deuteronômio 23.3

Os moabitas eram excluídos da religião e da vida social de Israel. Ainda assim, segundo Rute, uma moabita seria avó de Davi e uma daquelas mulheres na genealogia de Jesus.

Provavelmente a mulher mais famosa na genealogia de Jesus, antes de Maria, é a mãe do rei Salomão, Bate-seba, cujo nome não foi diretamente referido por Mateus. Adúltera, engravidou do rei Davi, que agiu para matar seu marido Urias (2 Sm 11:1-27; 12:1-18; 1 Rs 1:1-48). Mateus referiu-a, relacionando o homicídio (“a mulher de Urias”). Bate-seba, adúltera e, talvez, cúmplice do homicídio de seu marido, seria alguém que muitos dentre nós excluiríamos das nossas árvores familiares - mas ela faz parte da árvore de Jesus.

A última mulher, Maria, mãe de Jesus, também tem uma característica socialmente reprovável. Mãe solteira, Maria engravidou antes de casar-se com José.

Para mim, é muito significativa a presença dessas cinco mulheres na genealogia de Jesus segundo Mateus. Primeiro, por serem mulheres em uma sociedade que relegava as mulheres a uma situação ainda mais baixa que muitas da contemporaneidade. "Oh, Senhor muito obrigado por não ter nascido gentio, escravo e nem mulher”, oravam os judeus, o que, por si só, torna significante a citação a mulheres.

E não eram quaisquer mulheres - eram mulheres normalmente excluídas socialmente.

Tais elementos, para mim, significam duas faces da mesma moeda. Em primeiro lugar, que Jesus é para todos, especialmente os excluídos, os menos significativos, os mais perseguidos, para aqueles que muitas vezes preferiríamos esquecer. Por outro lado, significa também que qualquer história, seja pessoal, seja familiar, é importante e, assim, Deus pode se tornar conhecido e pode ser a salvação de qualquer um a partir de qualquer história de vida, inclusive e especialmente aquelas que a sociedade mais despreza.

Nenhuma história é insignificante ou impossível. Nem mesmo a sua.








26.12.16

A procura

Jesus disse: “Mulher, por que você está chorando? A quem procura?”.

João 20. 15



A vida é uma constante busca. Buscamos satisfazer nossos desejos e interesses desde recém-nascidos, ainda que não sejamos capazes de compreender, nesse momento, o mundo que nos rodeia.

Muito cedo, passamos a buscar a compreensão do que nos ocorre na vida - o que nem sempre é fácil de alcançar.

Cedo também tentamos encontrar o sentido das dores, frustrações e, finalmente, da morte. Lembro, por exemplo, que tinha sete anos quando encarei a morte pela primeira vez - a morte de minha prima, Elisabete, que partiu aos 17 anos. Lembro, também, de termos levado Alice ao velório de uma vizinha nossa com cinco anos, explicando a ela o significado daquilo. Desse modo, Alice encarou com muita tristeza mas naturalidade a morte de minha avó um ano depois.

Procuramos satisfações. Procuramos fugir da dor. Procuramos companhia, amizade, carinho. Procuramos respostas. Procuramos paz, tranquilidade. Procuramos vida.

Nem sempre vamos encontrar e, ao não encontrar, vamos precisar lidar com as frustrações e com a dor. Viktor Frankl diz que nós só conseguimos sobreviver ao sofrimento se formos capazes de dar sentido a ele: o sofrimento tem que significar algo para que possamos passar por ele. "Quem tem porque viver pode suportar quase qualquer como”, já disse Nietzsche.

A vida, então, é uma busca, principalmente, por sentido e significado.

Jesus foi julgado, morto e sepultado na Páscoa. Segundo João deixa claro, por razões eminentemente políticas - Jesus foi julgado e morto como um subversivo revolucionário, um inimigo de César.

Os discípulos ficaram arrasados - em sofrimento e buscando o sentido de tudo aquilo que lhes permanecia oculto. No domingo pela manhã, um grupo de mulheres vai à sepultura para cuidar de um cadáver de dois dias que foi enterrado às pressas por causa do sábado, com apenas o mínimo de ritual.

O corpo era um sentido para o qual a vida podia seguir - ao menos naquela manhã. Elas tinham de fazer algo com o seu sofrimento.

O corpo, no entanto, não estava lá.

Penso que toda dor e todo sofrimento tenham se tornado mais amplos e significativos para aquelas mulheres enfrentando um luto de dimensão inimaginável.

Depois que o evangelista e Pedro passaram pelo sepulcro, Maria ficou no jardim sozinha para chorar suas dores. Imersa em sua imensa dor e sofrimento, ela se depara com Jesus, mas não o reconhece.

As perguntas do Mestre são decisivas:

“Mulher, por que você está chorando? A quem procura?”

A quem nós procuramos? Por que choramos?

O que nos faz sofrer? Onde temos encontrado os sentidos e significados de nossa vida?

Jesus estava ali no jardim. Ele era a resposta que Maria tinha a dar ao seu sofrimento e à sua busca. Mas ela o procurava morto e, morto, nunca o encontraria. Sua busca por um morto não aliviaria jamais seu sofrimento e sua procura constante.

Para encontrar o que procurava, Maria precisava entender que Ele estava vivo.

A experiência fundante da fé não é o Natal, não é a Cruz nem o túmulo vazio. A experiência fundante da fé é encontrar o Jesus Ressurrecto, é saber que Ele está vivo.

A melhor resposta ao nosso sofrimento e o melhor significado da nossa busca estão no Deus que se encarnou, se tornou um de nós e, mesmo tendo sido julgado, torturado e executado, está vivo. A melhor resposta à nossa procura é Jesus vivo.

25.12.16

O Natal é vida

"Você não precisa esperar pelo fim. Eu, aqui e agora, sou a Ressurreição e a Vida. Quem crer em mim, ainda que morra, viverá. Qualquer um que vive crendo em mim não irá morrer em definitivo. Acredita nisso?”

João 11. 25-26



É Natal. Deus se fez um de nós em um menininho judeu, nascido na Palestina, filho de mãe solteira, pobre, na periferia da periferia do mundo.

Hoje, relembramos que Ele nasceu. Hoje, nos colocamos ao lado dos pastores e o seu anúncio por anjos, de sábios do Oriente e seu mapa astrológico, de Simeão e Ana quando de sua apresentação no Templo. Hoje, vemos Sua Glória, sabemos que veio para os seus que o rejeitaram, cremos que a “Palavra tornou-se carne e sangue, e veio viver perto de nós. Nós vimos a Glória com nossos olhos, uma Glória única: o Filho é como o Pai, sempre generoso, autêntico do início ao fim” (Jo 1. 14).

Mas o seu nascimento não encerra toda a história do Deus que se esvazia de Si mesmo e se faz um de nós.

Ele esteve entre nós e, de alguma maneira, todos os que se encontraram com Ele foram tocados, a maioria encontrou salvação.

Se você prestar bem atenção ao que relatam os evangelistas, salvação não é algo que diga respeito à morte e ao que sucederá a ela. Salvação, nos encontros de Jesus, tem a ver com a vida e suas dimensões de dor, de sofrimento e de morte. Jesus salva cada uma das pessoas com quem se encontra na vida e para a vida. É, como ouvi outro dia, a eternidade tocando e tomando a vida no tempo.

Salvação tem a ver com vida.

João 11 nos conta de Lázaro, suas irmãs e a morte do amigo amado de Jesus. Conta que Jesus decide esperar sua morte antes de ir à Betânia. Conta do milagre da ressurreição de um morto após quatro dias - o último sinal antes da própria morte e ressurreição de Jesus.

Mas o trecho sobre o qual eu mais gosto de pensar são os versículos 25-26:

"Você não precisa esperar pelo fim. Eu, aqui e agora, sou a Ressurreição e a Vida. Quem crer em mim, ainda que morra, viverá. Qualquer um que vive crendo em mim não irá morrer em definitivo. Acredita nisso?”

Salvação é sobre a vida. “Ainda que morra, viverá”.

Você não precisa esperar pelo fim. Deixe-me sugerir algo a você. Esqueça por um instante qualquer ideia que você tenha sobre a ressurreição física dos mortos no fim dos dias - ou, como diz o credo apostólico, a ressurreição da carne. Pense na salvação como dimensão da vida.

"Ainda que morra, viverá".

Jesus veio para nos ressuscitar, porque Ele é a Ressurreição.

Ele veio para nos dar vida, porque Ele é a Vida.

Só Ele é capaz de nos tirar da morte e nos levar à vida.

Você sabe o que é estar morto em vida, não sabe? Sabe aquele momento em que não há esperança, não há graça, não há paz, tudo se perde. E só uma voz pode ser ouvida para que as coisas não sejam mais assim: “Lázaro, venha para cá!” (Jo. 11. 43).

Natal é também para lembrarmos que o Deus-menino é aquele que é Ressurreição e Vida. Que nos faz viver além da nossa morte. Que nos faz provar uma vida com sabor de eternidade e intimidade com o Eterno.

O Natal nos aponta a Páscoa, a experiência de cada uma e cada um com o Jesus que está vivo, além da cruz e do sepulcro.

O Natal nos aponta que há vida - e muita vida para ser vivida com Ele que é a Ressurreição e a Vida.