3.3.06

Magoado

Quando recebeu esta mensagem, José chorou.
Gênesis 50. 17

Já ouvi muitas vezes a história de José. Sempre, ao ser contada, sua história elogia seu coração bondoso e perdoador: José é sempre mostrado como um homem que não guardou mágoa e jamais tentou dar o troco contra os seus irmãos maldosos, que o surraram e o venderam como escravo (Gn. 37). José, o sonhador, é sempre citado como exemplo de benignidade e perdão, alguém que jamais se pôs no lugar de Deus para tomar vingança contra o que sofreu.
Sinceramente, eu não consigo ver isso no texto bíblico. Eu vejo um homem amargurado que, fazendo uso de sua posição de poder, resolve devolver aos irmãos um pouco da dor e do sofrimento que eles o fizeram passar.
No capítulo 41 de Gênesis, José é exaltado pelo faraó depois de lhe interpretar dois sonhos e lhe dar dicas de como conduzir o reino em virtude dos anos de fartura e, principalmente, de fome que virão a seguir. O faraó o põe como governador da terra. Desde sua descida como escravo ao Egito, ferido e vendido pelos irmãos, alguns anos já se passaram. Seria improvável que José não alimentasse a sua mágoa, até mesmo porque sabia que tudo o que lhe foi feito foi conduzido pela inveja: os irmãos não gostavam de ouvir falar de sonhos que exaltavam José, contados de maneira tão orgulhosa pelo irmão caçula. Agora, certamente José via cada vez mais perto o cumprimento daqueles sonhos. Afinal, ele era governador da maior nação da terra. Parte do que sonhara já se realizava. Possivelmente, pensou algumas vezes nos próximos anos em descer a Canaã para humilhar a família que tanto o maltratou. Mas aquilo era difícil demais por causa da função que exercia.
Certamente, ao reconhecer seus irmãos entre os viajantes que foram ao Egito em busca de comprar mantimentos, José gelou ante a eminência da realização daquilo que ele não sabia mais ser sonho ou uma simples vingança: ver seus irmãos e seus pais prostrados diante dele (Gn. 37. 6 – 10).
Para os que não conseguem pensar em José como vingador, vou recordar a seqüência do que aconteceu daí em diante. Primeiro acusou os irmãos de serem espiões e os pôs na cadeia por três dias. Depois, manteve Simeão preso por um tempo, enquanto os demais voltaram para casa, sabendo que não comprariam mais nada se Benjamim não viesse com eles (Gn. 42. 14 – 24).
Em seguida, quando os irmãos voltam ao Egito (Gn. 43 – 44), trama para incriminar Benjamim como ladrão de uma taça de ouro. Os demais irmãos ficam aflitíssimos sob a perspectiva de perderem Benjamim e permitirem que seu pai morra de tristeza. A situação de Judá, o irmão que propôs que o vendessem aos mercadores anos antes, é a mais angustiante: ele fez um acordo com Jacó que daria seus filhos em lugar de Benjamim. A vingança foi perfeita. Depois disso, José se revelou e trouxe o resto da família para o Egito, a fim de passar pelo apuro da seca e da fome.
Nós somos assim. Deixamo-nos levar pela mágoa e os desejos de vingança e de revanche. Mesmo que ouçamos a voz do Senhor todos os dias nos desafiar à revolução do perdão. Mesmo que, em último caso, saibamos que a vingança é do Senhor. Mesmo assim, conduzidos pelos sentimentos de troco, fazemos o que pudermos para infringir nos que nos feriram o mesmo que fizeram a nós. Ainda que a voz do perdão grite dentro de nós, a mágoa nos faz querer dar o troco.
Mas o troco não nos satisfaz. Ele, talvez, nos angustia mais ainda. Porque percebemos que não traz nenhum efeito para reduzir a dor e o sofrimento. Talvez por isso vemos José chorando tanto nestes capítulos de Gênesis. Provavelmente ele percebia que ainda que fizesse seus irmãos passarem por situação semelhantes a que sofreu, nada ficava mais fácil; nada dói menos. Ele percebia que a vingança só o empurrava para uma situação pior. Mas por mais que tudo isso fosse doentiamente ruim, a espiral da mágoa dominava a tal ponto o coração de José que ele era incapaz de tomar uma atitude diferente.
Eu já fiz inúmeras vezes. E sei que muitos que me lêem também. Magoados, se deixam levar pelo sofrimento e tentam tomar a vingança em suas próprias mãos. Nessas horas somos capazes de dar os argumentos mais religiosos para justificar as nossas ações e sentimentos. Mas no fundo, sofremos ainda mais porque a vingança não apaga a dor e ainda nos faz sentir piores. Especialmente porque a lei do amor é a revolução do perdão.
Mas Deus não desiste de nós. Quando recebeu esta mensagem, José chorou.
Acho que esse choro de José foi diferente de todos os outros. Acho que aqui finalmente a ficha caiu. Depois da morte do pai, ele percebe o desespero dos irmãos que temem a morte. Provavelmente José se tocou que sua mágoa estava a ponto de desfacelar a família – eleita por Deus para ser a realizadora das maiores promessas da história. Finalmente, a seta do amor e a revolução do perdão tocou a alma e o coração de José. Ele chorou porque foi liberto do aguilhão da mágoa e dos sentimentos de vingança: Não tenham medo; eu não posso me colocar no lugar de Deus. É verdade que vocês planejaram aquela maldade contra mim, mas Deus mudou o mal em bem para fazer o que hoje estamos vendo, isto é, salvar a vida de muita gente. Não tenham medo. Eu cuidarei de vocês e dos seus filhos (Gn. 50. 19 – 21). Se Deus transformou o mal em bênção, por que José alimentaria ainda mais o sofrimento com a mágoa que levava no coração? Era hora de se livrar da mágoa. Era hora de se deixar levar pelo amor e perdão.
Talvez essa seja a sua hora. Abandonar a mágoa. Desistir do sofrimento. Permitir que a seta do amor de Deus acerte em cheio o seu coração e a sua alma. Render-se diante da Cruz do Calvário e da revolução de amor e perdão que se manifesta ali. Agora é com você.

O sol vai nascer

O choro pode durar a noite inteira, mas de manhã vem a alegria.
Salmo 30. 5

Como conter um coração que explode da alegria da libertação? A Bíblia nos fala sempre das festas de libertação do povo do Senhor. Eu as imagino repletas de uma celebração entusiástica que nenhum de nós poderia se sentir completamente à vontade. Acho que o sentimento de alegria pela libertação nas histórias bíblicas sempre foi tão intenso que não seria difícil chamá-lo de exagerado.
Já falei antes sobre a festa do outro lado do Mar Vermelho. A conjunção dos fatores – escravidão de quatro séculos, aperto diante do mar, morte iminente e livramento maravilhoso – só me conduzem a imaginar que a explosão de festa e alegria do outro lado colocaria as luzes da festa de Carnaval a uma inimaginável distância desta celebração. Festa do Deus libertador é sempre uma festa tremenda.
Se esse sentimento for transposto para a celebração do povo de Deus no Novo Testamento, liberto de escravidão e morte ainda mais sérias que o Egito, deveríamos reconhecer na Igreja o povo mais festivo e alegre da terra. Afinal, o povo transportado do império das trevas para o Reino do Filho amado: É Ele quem nos liberta e é por meio dEle que os nossos pecados são perdoados (Cl. 1. 13 – 14).
Isso nos fala das maiores libertações que geram em nós a mais intensa e extasiante alegria. O culto da Igreja de Cristo deveria ser a maior festa que jamais foi vista no mundo. A cada reunião. Mas se Deus nos alegra nas grandes e maiores libertações, Ele nos liberta no dia-a-dia de coisas menores.
Comecei a pensar nisso hoje quando conversava com uma amiga minha sobre o refrão de uma música do U2, da qual falei esta semana, Yahweh. A letra diz assim: Yahweh, Yahweh/ sempre dói antes que uma criança nasça/ Yahweh, Yahweh/ ainda estou esperando pelo amanhecer.
Já experimentei libertações e a alegria desse momento. Mas também já experimentei a dor e a dúvida da luta e do sentimento de morte. Nessas horas nos questionamos, reclamamos, clamamos acerca do porquê ainda estarmos esperando o sol nascer. Por que esta noite dura tanto?
Nessas horas de dúvida, palavras não servem para nada. E se eu acredito que devemos lembrar das festas de libertação é porque precisamos manter a fé: a história ainda não acabou. O sol vai nascer. O choro pode durar a noite inteira, mas de manhã vem a alegria. Ou como dizem os irlandeses: (...) sempre dói antes que uma criança nasça/ (...)/ ainda estou esperando pelo amanhecer.
Se é noite em sua vida, espere o amanhecer. Se tudo falha em seu coração, tenha pelo menos um certeza: o sol vai nascer. A alegria da libertação, nesse dia, inundará a sua vida.

2.3.06

Cisternas

O meu povo cometeu dois pecados: Eles abandonaram a mim, a fonte de água fresca, e cavaram cisternas, cisternas rachadas que deixam vazar a água da chuva.

Jeremias 2. 13



O povo do nordeste vive constantemente sob o fio da espada da seca. Fome e miséria fazem parte do cenário que tem como componente importante a falta de chuvas. Entre as formas de resistência e enfrentamento dos efeitos da seca, uma que tem ganhado força e visibilidade, mesmo quando se discute a transposição do Rio São Francisco, é a construção de cisternas.

Confesso que nunca vi uma cisterna, a não ser pela televisão. A idéia é ter um enorme tanque que acumule a água das chuvas, que seria preservada até o período de estiagem. Além disso, já aconteceu de brotar água subterrânea da escavação de cisternas e até poços de petróleo. De qualquer forma, a idéia da cisterna é guardar a água, que é vida, para as necessidades mais fundamentais das homens do sertão.

Estava pensando nisso porque o profeta Jeremias faz uma comparação entre o nosso relacionamento com Deus e a escavação de cisternas. Na verdade, Deus faz um alerta. É como se Ele nos dissesse: Vocês estão no deserto, o sol a pino, a sede e a fome apertando, mas não conseguem perceber que Eu sou a fonte de água sempre disponível para saciar suas mais terríveis sedes. Em vez de virem a Mim e beberem da água que dou, que impede para sempre a volta da sede, vocês tentam achar suas próprias saídas e respostas, cavando por si sós desnecessárias e mal feitas cisternas. O pouco alívio que elas trazem ainda dura um tempo mínimo, porque, paredes mal erguidas, a água parca se esvai entre as rachaduras.

Não penso que essa fala do Senhor serve para qualquer pessoa que não seja eu. Quando olho para meu coração, vejo um monte de carências e necessidades. E, em vez de esperar a saciedade que o Senhor pode me trazer – Ele, a fonte da vida – tento achar minhas próprias saídas e construo minhas próprias cisternas.

Sou eu que tenho feito cisternas rachadas que deixam a pouca água – que penso saciar-me – esvair-se. Sou eu que procuro a saciedade de minha alma e a solução de meus problemas em muitas coisas fora de Deus. Sou eu que tenho esquecido que Jesus é a fonte de água viva. Tenho vivido distante da verdade das palavras desafiadoras e reconfortantes do Mestre: a pessoa que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. Porque a água que eu lhe der se tornará nela uma fonte de água que dará vida eterna (Jo. 4. 14).

Sou eu que tenho tentado saídas humanas, feitas por minhas mãos, para a necessidade de relacionamento com o Senhor. Sou eu que tenho buscado saídas humanas para os meus problemas, esquecendo da proposta fantástica e transformadora de Jesus: Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Como dizem as Escrituras Sagradas: “Rios de água viva vão jorrar do coração de quem crê em mim” (Jo. 7. 37 – 38).

Sou eu que tenho esquecido do Senhor. Sou eu que tenho sofrido as conseqüências disso. Eles abandonaram a mim, a fonte de água fresca, e cavaram cisternas, cisternas rachadas que deixam vazar a água da chuva. São para mim estas palavras. Para mim e muitos outros do povo de Deus que peregrina no calor e sequidão do deserto e que, por isso, não tem a mínima chance de sobrevivência sem água. Sem a Água Viva que vem do trono de Deus. Sem a comunhão plena e íntima com Jesus. Unicamente com cisternas rachadas, tentativas humanas de se construir uma saída.

Oração

Meus ouvidos querem ouvir, mas são surdos.

Meus olhos querem ver, mas são cegos.

Minhas pernas querem andar até Ti, mas são fracas.

Meu respirar já foi Tua presença, mas meu peito hoje arfa sem forças.



Quero buscar a Ti com o que me resta no interior,

mas a minha fraqueza é presente demais,

o meu pecado me distancia de Ti,

minhas incertezas me fazem esquecer o que fazer.



Sei que Tu estás aqui, a me cercar – creio nisso –

sei que a Tua mão me protege – quero crer nisso –

sei que a Tua força me conduz – ajuda-me, incrédulo que sou!



Tenho muitas saudades de Ti, de Teu toque, Teu afago, Tua voz e Tua glória.

Ó Deus, não me deixes matar o que de bom tenho em mim:

Tu mesmo, meu Senhor e meu Deus, o único bem que realmente preciso