30.12.14

Perversidade travestida de piedade

Publicado originalmente no De olho no discurso

Já falei algumas vezes sobre minhas experiências de fé religiosa por aqui.
Hoje estou compelido a falar de algumas coisas novamente.
Era o ano de 1996 quando eu me converti. Primeiro ano de graduação. Passava por uma crise intensa e comecei a abandonar o espiritismo kardecista. Alguns meses depois, em setembro, decidi que a melhor escolha era "seguir Jesus".
Converti-me numa igreja conservadora, mas tão conservadora que era proibido bater palmas nos cultos - e instrumentos de bateria e percussão eram extremamente mal vistos.
Ouvi nessa igreja um pastor dizer que Deus recebe o louvor por atabaques por causa de sua misericórdia.

A igreja tinha uma teologia homofóbica, anti-católica, conservadora e fundamentalista.
É evidente que nos primeiros momentos eu me perdi nesse caminho. Mas aos poucos a própria igreja foi ficando menos rígida no que se refere, por exemplo, às questões litúrgicas e, em poucos anos, tínhamos uma banda completa no louvor - que me tinha como vocal.
Mas, graças a Deus, a gente não é estagnado. Também aos poucos e como resultado de o avanço na minha vida devocional e nos estudos teológicos eu fui me afastando desse paradigma que ojeriza tanto as "coisas do mundo" que me fizeram queimar discos, camisas, coisas que, eu acreditava, eram vinculados ao diabo.
Eu era tão homofóbico que quando vim estudar em Fortaleza no Seminário fiquei chocado com os amigos de meu primo que foi me buscar no aeroporto. Não conseguia ficar no mesmo ambiente que eles.
A caminhada na vida fez muita coisa ser quebrada.
Conviver com o sofrimento de amigos, irmãos crentes, que se desgastavam com o "pecado do homossexualismo" me ensinou sobre tolerância e me fez refletir sobre o "porquê mesmo" disso ser ou não pecado.
Se em um primeiro momento tudo que eu quis ser foi um apologeta da fé cristã reformada, puritana e conservadora, graças a Deus que a Sua cura me alcançou e eu fui entendendo uma outra dimensão da graça e do amor que me parece impossível serem alcançadas por fundamentalistas, puritanos, conservadores. É a incompreensão dessa graça que faz desses, inclusive, invariavelmente, partícipes da direita. Às vezes, da extrema direita.
Nesse sentido, alguns momentos foram marcantes. O primeiro, os dois anos em que estudei teologia no Seminário Teológico de Fortaleza. Estudar ali me fez ver o tamanho da besteira que eu fazia contra a Bíblia, contra a minha fé e contra meu relacionamento com Deus quando priorizava ser dogmático e amar a teologia sistemática. Foi o STF que me curou do meu dogmatismo e me fez abandonar completamente qualquer tentativa de sistematizar a [minha] teologia e abandonar a teológica sistemática.
Em 2003, uma segunda experiência marcou minha caminhada - o Forum de Teologia Popular na Igreja Batista de Bultrins, em Olinda (PE). Dois dias de convívio com aquela comunidade e com aquelas ideias consolidaram diversas mudanças - que se sedimentaram na sequência quando participei de diversas reuniões da FTL em Paripueira (AL).
Mas a experiência decisiva foi dolorosa mas sem a qual eu não seria quem sou hoje. Foi ter deixado a IPI, em 2005. Ter saído do universo teológico da IPI, do fundamentalismo, do conservadorismo, me permitiu mergulhar em novas leituras da Bíblia e novas caminhadas da fé que, com seus percalços, me trouxeram aonde estou.
Não caibo em espaços conservadores, literalistas, fundamentalistas. Não caibo porque não posso conceber um Deus que seja encaixotado em conservadores, interpretações literalistas ou defesas fundamentalistas ou puritanas da fé. Não foi esse Deus que me salvou em Jesus Cristo. Não é um Deus encaixotado que se revela nas Escrituras do Antigo Testamento, em Jesus. O Deus que eu encontro ali subverte as religiosidades, confronta os poderes, destrona os fundamentalismos, discute os conservadorismos. Vejo mais similitudes dos conservadores religiosos com aqueles que crucificaram Jesus do que com o Próprio e Seus seguidores.
Minha caminhada encontrou um Deus que inclui, que salva, que ama, que não apaga o pavio que fumega, que não pisa na cana quebrada. Que acolhe.
Mas encontrou uma igreja que condena, que ataca, que critica, que culpa, que empurra ao desespero, que cria o pecado. Dessa igreja eu não posso fazer parte.
Eu encontro um Jesus que ama as pessoas. Ama quem elas são. E elas são brasileiras, palestinas, israelenses. Elas tem diversas identidades sexuais, amam de maneira diversa - e Deus é amor -, são hetero e homossexuais. São trans. São santos e pecam. São jovens, velhos, homens e mulheres. E não tem nada nem ninguém, nem seus pecados, nem seus atos, nem seus pensamentos, que seja capaz de os afastar do amor de Deus. Nem eu, nem a igreja.
Malafaias e Felicianos são perversos acima de tudo. E usam a religião para justificar, manifestar, contextualizar sua perversidade. Eles não são únicos. Todos os domingos, em milhares de igrejas por aí, as pessoas se reunem em nome de Deus para celebrar sua estupidez e perversidade. O coração de Deus se abre, é humano, de carne. O coração destes é perverso.
Lembro de um dia em que estava na Escola Dominical da Igreja Presbiteriana Central de Fortaleza (CE). Faz uns 12 anos. O professor dos jovens propôs uma atividade interessante: ao chegarmos na sala, havia no meio das cadeiras algumas que estavam reservadas para notórios pecadores da sociedade brasileira. A pergunta era simples: o que vocês fariam se esses lugares estivessem realmente reservados e essas pessoas viessem aqui. As mais piedosas, evangelísticas e missionárias respostas foram geradas.
Aquilo me incomodou. Eu sabia que pouco tempo antes aquela mesma igreja havia disciplinado um presbítero por adultério. Quando se cumpriu o tempo da "pena" o homem recebeu diversas ligações "sugerindo" que ele não era mais bem-vindo ali.
É fácil pensar com graça para com alguém que é distante de nós.
Aquilo já me incomodou [Deus já estava atuando em mim :)].
Eu pedi a palavra. Lembrei o caso de Caio Fábio, que havia sido o pastor do Brasil mas que depois de "cair em pecado", passou a ser execrado, inclusive pela IPB, sua denominação. Comentei que pessoas diziam que não leriam sequer seus primeiros livros - como se toda sua "obra" tivesse se perdido pelo seu pecado.
Para minha surpresa, aqueles jovens eram perversos. Quase unanimente eles disseram que para eles Caio Fábio nunca mais poderia ser pastor, poderia ser restaurado em seu ministério, em sua vida.
Indignado, eu contra-argumentei que se eu duvidasse que a graça de Deus pode restaurar as pessoas, era melhor abandonar a Bíblia e eu não saberia mais o que fazia no seminário.
Essa foi uma experiência para descobrir que graça não combina com puritanos fundamentalistas. E que a perversidade religiosa não escolhe idade.
A perversidade se traveste de piedade. Por mais amor e menos disciplina. ‪#‎NaoExisteAmornasIgrejas‬

Para anunciar libertação

O Senhor me deu Seu Espírito (…) e me enviou (…) [para] libertar os que estão sendo oprimidos 
Isaías 61. 1 

Publicado originalmente no De olho no discurso

Lucas (Lc. 4. 18) relata que Jesus tomou o livro de Isaías na Sinagoga e leu esse trecho. E depois anunciou: “Hoje se cumpriu o trecho das Escrituras Sagradas que vocês acabam de ouvir” (Lc. 4. 21).
Ao anunciar o “tempo em que o Senhor salvará o seu povo”, Isaías complementa que o Servo seria enviado "para consolar os que choram” (Is. 61.2).
A tradição do cristianismo identifica o texto de Isaías como uma profecia acerca de Jesus. E entende que o ministério de Jesus, o Messias, ungido pelo Espírito, é continuado pela igreja.
Fiquei pensando de ontem para hoje em uns tantos oprimidos aos quais a igreja negligencia ajuda para se libertar: as mulheres submetidas ao machismo, os negros submetidos ao racismo, os trabalhadores submetidos à exploração, os homossexuais e trans submetidos à transhomofobia.
Em vez de libertar mulheres do machismo, temos um candidato pastor acusado por violência doméstica.
Em vez de libertar os negros do racismo, temos um pastor deputado que os chama de amaldiçoados publicamente.
Em vez de ajudar a libertar trabalhadores da opressão, reclamamos quando lutam por seus direitos em greves, ocupações. Ou defendemos flexibilizar seus direitos. Ou modificar a lei que tipifica o trabalho escravo no país.
Os cristãos pretendem, às vezes parece, trancafiar os gays em seus armários e atirá-los às chamas do inferno.
Fiquei pensando que libertar os oprimidos bem pode significar nos dias atuais ajudar a arrombar as portas de tantos armários que ainda existem a serem abertos. E ajudar os oprimidos a encontrar libertação.

Testemunho de conversão: de como eu deixei de crer num evangelho que exclui os homossexuais



Publicado inicialmente no De olho no discurso

Na última sexta-feira [i.e., em 4 de abril de 2013] fui ouvir o pastor Ricardo Gondim na celebração dos 32 anos da Igreja Betesda, aqui em Fortaleza.
Sua mensagem me fez pensar.  Falando em cima de Filipenses 3. 13-14 (Irmãos, não penso que eu mesmo já o tenha alcançado, mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que ficaram para trás e avançando para as que estão adiante, prossigo para o alvo, a fim de ganhar o prêmio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus), a reflexão do pastor tinha elementos psicanalíticos - como a ideia de que "esquecer" tem a ver com ressignificar os fatos do passado para que possamos deixar o que fica efetivamente para trás.
Uma coisa me fez pensar sobre minha própria vida. Instantes antes do pastor assumir a Palavra, o pastor Mardes, titular da igreja aqui em Fortaleza, me apresentou relembrando fatos de minha vida - de como eu planejava me tornar pastor e de como a vida mudou e me fez professor.
Sempre falo sobre isso focando os planos A, B ou C da vida que foram modificados.
Ricardo Gondim falou sobre isso: a vida não se torna uma desgraça somente porque um plano não tenha sido cumprido conforme planejamos.  São milhares de planos que Deus tem em nossa vida para que alcancemos a sua vocação.
Isso me ajudou a aprofundar a ressignificação de vários momentos de mudanças e viradas em minha existência.  Como quando eu deixei o seminário teológico - coisa lembrada pelo pastor Mardes.
Outra frase de Ricardo Gondim me fez pensar.  Ao falar sobre sexualidade, o pastor lembrou que não existem pessoas hetero, homo ou bissexuais, mas sim existem pessoas que têm dificuldades em suas sexualidades.  "Quem não tem dificuldades na sua própria sexualidade que atire a primeira pedra", disse.
Isso me fez refletir sobre uma coisa que já expressei no Facebook, mas que nunca havia trazido ao blog.
Vou fazê-lo agora.
***
Converti-me em uma igreja bem conservadora, na qual sequer podíamos acompanhar os cânticos com palmas e onde bateria era coisa do diabo.  Se era assim no campo musical, avalie no que se refere às minorias, especialmente os homossexuais.
Fui criado também em uma cultura homofóbica e isso, associado à minha experiência religiosa, reforçava minhas ideias relacionadas aos homossexuais no âmbito do cristianismo.
Minha conversão ao evangelho de Jesus se deu em um processo durante o qual eu, espírita, entendi que Jesus era Deus feito homem.  Desse modo, poderia morrer por mim e por quem cresse.  O espiritismo parte de uma premissa irrefutável: afirma que cada um é responsável por suas próprias ações.  Sendo assim, Jesus entendido como um simples homem nunca poderia expiar os pecados de outra pessoa.  Por isso a compreensão da pessoa de Cristo e o valor de Seu sacrifício foram fundamentais para que eu me entregasse a Ele.
E a homossexualidade?
Lembro de uma vez, em meados da década passada, que viajamos uma caravana de Natal para participar de um encontro teológico em Alagoas.  Tenho a impressão que do ônibus inteiro apenas um pastor se manifestava abertamente em favor da homossexualidade - e justificava tudo na perspectiva hermenêutica de entender manifestações culturais como essa como contingente.
Lembro que ouvia aquilo e discordava.  Pensava ser uma heresia imensa e, por isso mesmo, lembro de refletir sobre se a unidade entre aqueles de posicionamento tão diverso seria possível ainda diante de tudo.
Mas do mesmo modo que a compreensão do sacrifício de Cristo mudou minha vida e me fez compreender o evangelho de uma forma que nunca tinha feito - e me fez converter-me -, foi a reflexão sobre o sacrifício de Cristo que me fez mudar minha perspectiva sobre a homossexualidade.
Para mim a questão é clara: o centro da fé em Jesus é Cristo e este crucificado. Ele fez aquilo por amor. Amor não combina com o ódio disseminado por cristãos que dizem que O seguem. E o discurso de nossas igrejas está repleta de ódio. E quando não há ódio, há desvio. Jesus andaria com esses, os discriminados, e rejeitaria aqueles, os religiosos. Fez isso quando esteve por aqui antes da cruz. Faria (faz, na verdade), hoje.
O comportamento do cristinianismo homofóbico (que esquece que a mensagem do evangelho é o amor de Deus revelado em Jesus Cristo crucificado) não difere (talvez seja pior) daqueles religiosos contra quem Jesus se levantou. Os mestres da ortodoxia. Aqueles que diziam que Jesus era pecador porque andava com a escória social de seu tempo - os publicanos, as prostitutas.
Os religiosos de hoje não sabem acolher - sabem condenar. Em defesa da homofobia e contra a luta de gente como Jean Wyllys, agora os cristãos além de discriminadores são mentirosos, ardilosos, falsos. Se distanciam da mensagem da cruz. Aliás, a mensagem que deveríamos estar pregando é a cruz de Cristo.
Enquanto isso, um monte de gente perde tempo fiscalizando o fiofó dos outros. Além disso, cada dia mais a ciência comprova que homossexualidade não tem uma causa que deva ser curada - homossexualidade é uma condição natural do sujeito. Não deve ser negada. É geneticamente influenciada - está escrita nos gens, no cerébro. Negá-la é desumanizar o sujeito. E Deus se fez homem em Jesus para que ninguém mais fosse desumanizado.
Acho que as pessoas não lêem a Bíblia ou são incapazes de ler pelo menos a história de Jesus. Creio no Cristo que morreu pelos que não são sãos. Porque os sãos não precisam de remédio. Justificam-se a si mesmos - como aquele fariseu que não teve a mesma sorte de receber a justificação como o publicano que sabia não ser merecedor. O discurso religioso conservador e homofóbico reproduz o que pensam na letra dissociada do Espírito. Letra sem o Espírito somente pode provocar a morte - como o faz o discurso homofóbico do conservadorismo religioso.
Passei a refletir minha mudança, esquecendo o que para trás fica, quando conheci o sofrimento de muitos irmãos que, gays, passavam a crer que sua condição como sujeito era pecaminosa.  Um pecado impossível de ser restaurado.  Desse modo, abandonam a fé e a igreja porque não cabem nessa fé por serem o que são.  No entanto, crêem em Jesus como eu creio - mas sofrem sendo quem são.
Alguns já se libertaram.  Sabem-se pecadores, como eu sou. Dependem da graça para serem salvos como eu.
Desde quando, na Bíblia, existe outra coisa que salve ou condene alguém a não ser o sacrifício de Cristo na cruz. desde quando é o que eu faço ou deixo de fazer que me salva? Isso "não é dom de Deus, não vem de vós"? Por que é possível julgar que alguém não é salvo pelas roupas que usa ou por sua orientação sexual?  Nossos eventuais pecados são maiores que a graça de Deus, que a cruz de Cristo? Algum desses eventuais pecados é maior que os demais?
E o que fazer quando a ciência comprova a cada dia que ser gay ou hetero não é uma opção, mas uma orientação que é determinada, inclusive, geneticamente? Ou seja, é da essência do sujeito ser gay ou hetero - o que significa que negar o que se é é negar a própria humanidade. Como disse antes, a salvação em Cristo é fundamentalmente humanizadora: Deus, quando quis salvar, se fez um homem como nós na pessoa de Cristo.
O ponto de partida para ler a Bíblia é ou não é o sacrifício de Cristo na cruz? Vivemos sob a lei ou sob a graça?
Sinto que os cristãos andam precisando meditar mais sobre Cristo e sua cruz. Ler Paulo, ler o Antigo Testamento, sem que a base seja dada pelo significado de Jesus, sua vida e morte, é se afastar da vida na graça e continuar mergulhado na religiosidade das normas e das regras do isso pode isso não pode. É reduzir a eficácia da cruz para que se passe a determinar, humanos limitados, quem pode ou não amar a Deus, a Cristo e por Ele ser amado e perdoado. Encaixotamos Deus em nossa teologia, tiramos dEle a capacidade de amar, e criamos no seu lugar um ídolo assim - que costumo grafar deus. Desse deus eu quero ser e permanecer ateu.
Admito até que em Romanos 1. 24 - 27 Paulo esteja falando de homossexualidade - se bem que não acho que seja disso [apenas] que ele está falando. Tomando literalmente o que é dito ali, sexo somente poderia ser feito para reprodução e somente com intercurso vaginal. Nada de sexo oral ou de qualquer outra liberdade para a prática sexual de um casal heterossexual. Acontece que, com raras exceções, ninguém defende mais isso nas igrejas cristãs.
No entanto, os cristãos homofóbicos, que defendem que esse texto deve ser interpretado assim literalmente, não dizem o mesmo, por exemplo, de textos como 1 Coríntios 14. 34, no qual Paulo manda que as mulheres se calem na igreja.  Por que se desobedece essa ordem de Paulo e, ao mesmo tempo, defende que ele esteja falando sobre homossexualidade quando cita imoralidade sexual e acredita que o texto de Rm. 1. 24-27 deve ser tomado literalmente hoje em dia? Isso, para mim, é incoerente. Quem acha isso de Romanos, deveria impedir que as mulheres falem na igreja e se comprometer, entre outras coisas, a levar seus filhos para serem apedrejados na porta da cidade em caso de desobediência. Por que a questão sexual é diferente?

Os homofóbicos adoram citar o texto de 1 Coríntios 6. 9 - 10: "Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? Não se deixem enganar: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus."  Não percebem que, nessa lista, não sobra ninguém.  Ninguém vai pro céu porque cada um de nós está abrangido em pelo menos uma dessas categorias.

Por que alguns textos devem ser interpretados sob a perspectiva da cultura e não os que falam da questão homossexual? Qual a chave hermenêutica que lhe diz que há diferença entre as duas coisas?
Eu respondo: nenhuma. Não existe nenhuma questão exegética ou hermenêutica que force que os dois tipos de texto podem ser interpretados de maneira diferente. Apenas a ideologia preconcebida de cada um. Ou seja: se eu acho que a mulher é inferior e deve ficar calada eu vou admitir como válido para os nossos dias o texto em que Paulo afirma que ela deve ficar calada. Se não, eu mudo. Do mesmo modo, com a questão da homossexualidade. Se eu acho que a fé cristã não deve ser espaço para os gays, eu afirmo que os textos devem ser interpretados como verdades absolutas para hj. Se eu admito que não é bem assim, eu os interpreto como histórica e socialmente condicionados. A gente faz isso com a Bíblia inteira. Por isso, o princípio básico da interpretação é Cristo e Seu sacrifício. A partir dele, lemos o resto. E para mim ler a Bíblia a partir disso mudou minha concepcão sobre homossexualidade e sobre a vida. Me tornei cristão quando entendi Jesus, Seu ministério e Seu sacrifício. Deixei de ser homofóbico quando refleti sobre isso do mesmo modo.
Um último comentário sobre Romanos 1. 24 - 27.  O texto afirma a mulher como objeto e ninguém questiona isso: "o uso natural da mulher" é algo que me diz que a mulher nada mais é que um objeto para que eu a use.  Se eu usar o texto para dizer isso numa pregação serei devidamente expulso do ambiente.  Por que ninguém questiona assim o resto dos mesmos versículos?
Graças ao bom Deus e à luta dos protestantes, não vivemos em um estado ou sociedade cristãos. O estado e a sociedade são laicos. Somos nós, os cristãos, que não temos o direito de impor aos que não comungam de nossa visão de mundo aquilo que cremos. Nosso mundo é plural, diverso e pretensamente democrático. Temos os nossos direitos. Os gays, heteros, brancos e negros. E aqueles que estão em situação mais precária em seus direitos (como índios, negros, ciganos, gays) precisam ser protegidos pelo estado.

Os religiosos

Então Jó respondeu ao Senhor:Sei que podes fazer todas as coisas; nenhum dos teus planospode ser frustrado.Tu perguntaste: “Quem é esse que obscurece o meu conselho sem conhecimento?”Certo é que falei de coisas que eu não entendia, coisas tão maravilhosas que eu não poderia saber.Tu disseste: “Agora escute, e eu falarei; vou fazer-lhe perguntas, e você me responderá”.Meus ouvidos já tinham ouvido a teu respeito, mas agora os meus olhos te viram.Por isso menosprezo a mim mesmo e me arrependo no pó e na cinza.
(Jó 42. 1-6) 


O livro de Jó é uma novela fascinante. Sua presença no canon hebraico já representa muita coisa, por diversos motivos: Jó não é descendente de Abraão e, nem por isso, sua vida e sua fé deixa de ser exemplo para os judeus.
A presença do livro na Bíblia já parece traduzir a tensão sempre presente entre a ortodoxia teológica do templo de Jerusalém e outras perspectivas de fé que existiam no meio do povo. A estória de um fiel de Uz tensiona, sozinha, a fé judaica.
Mas o conteúdo do livro ainda faz mais.
Algumas coisas me chamaram a atenção em sua leitura recente.
Os amigos de Jó (Elifaz, Bildade, Zofar e até Eliu) são fiéis representantes da ortodoxia religiosa - que talvez fosse chamada de fundamentalista no nosso paradigma contemporaneo.
Jó, seu amigo, sofreu uma perda imensurável - família, bens e saúde. Encontra-se em profundo sofrimento, lutando por entender tudo o que aconteceu ao mesmo tempo em que pretende manter a sanidade e a fé em Deus. O que pretendem os amigos é convencer a Jó que ele é culpado por pecado, por isso Deus o castigou. Eles julgam o cenário de acordo com a teologia mais sistemática do seus dias. Afinal, o Pentateuco nos disse que, ao entrar na terra prometida, o povo foi submetido às promessas de bênçãos e maldições. As bênçãos resultariam do comportamento correto. As maldições são fruto do pecado (Dt 27 e 28). Se Jó está sofrendo, de acordo com essa teologia, só pode ser porque pecou.
Eu me lembro que uma das primeiras histórias que aprendi, sobre pecado, quando me converti, estava no livro de Josué e dizia que o povo sofreu uma derrota em Ai porque Acã havia pecado em Jericó (Js 6, 7 e 8). Ou seja: aprendi que as coisas dão errado porque estamos em pecado. Se resolvermos as coisas, abandonarmos o pecado e corrigirmos a vida, a benção de Deus virá sobre nós.
Outro formato contemporâneo dessa crença é a teologia dos galardões: se fazemos o certo, mesmo que não tenhamos recompensa aqui e agora, teremos na volta de Jesus. Nossa ação, logo, como o fazem espíritas ou os que creem na salvação por obras, é feita visando à recompensa.
Jó destrói essa teologia. E por isso, também, parece estar na Bíblia para se contrapor a ela. É o próprio Deus que diz, duas vezes, que Jó é fiel, honesto, leal, consagrado e que odeia a mentira (Jó 1. 8; 2. 1-3). Logo, o leitor do livro já sabe de início que Jó não sofre porque seja pecador, como punição pelos seus erros.
Mas não é isso que pensam os seus amigos religiosos. Eles são movidos por essa teologia ortodoxa. A verdade, para eles, vale mais que o apoio.
Que tristeza ver amigos assim (que são comuns)! Tudo que Jó poderia precisar era consolo, conforto, companhia. Acolhida. Pessoas que chorassem com ele. Tudo que ele encontra são amigos que tentam convencê-lo de que, se ele sofre, só pode ser resultado do pecado. Afinal é assim que ensina a ortodoxia. "Quem planta colhe!"
O último a falar, Eliú, parece que dirá algo diferente, mas reforça tudo o que foi dito antes, apenas enfatizando o "absurdo" de Jó pedir para que Deus lhe explique o que está acontecendo.
Jó não sofre porque é pecador. O sofrimento não é consequência de punição por pecado, nos lembra seu livro.
Por outro lado, o consolo é algo de que precisamos na hora da dor. Não cabe, nessa hora, a disputa para saber quem está certo, quem tem a melhor teologia, quem é mais santo - mesmo que essa seja uma constante no nosso mundo religioso.
Jó é surpreendido quando Deus finalmente aparece para o diálogo. Ele não responde os porquês do sofrimento! Jó se submete à ideia de que era incapaz de compreender tudo (Jó 42. 1-6).
Mas há duas coisas que não podem ser, também, deixadas de lado e que expõe a fragilidade da teologia dos amigos de Jó.
A primeira é que, ao contrário do que eles afirmavam, Deus se importa em vir conversar com Jó. Deus se importa em descer para se relacionar conosco. Se importa de vir pessoalmente dialogar conosco. Mesmo que não seja para dizer o que achamos que necessitamos, Ele vem a nós para nos lembrar que está conosco mesmo quando não parece estar.
A segunda: nós carecemos dos porquês para o sofrimento, mas nem sempre o sofrimento tem explicações. Para os sistemáticos amigos de Jó, como para muitos religiosos, a causa do sofrimento é o pecado passado (não é assim que creem cristãos e espirítas?). O livro de Jó nos mostra que mais do que explicar a dor, somos chamados a estarmos com quem sofre consolando-o em seu sofrimento. Porque nem sempre há explicações possíveis, não há palavras a serem ditas, não há relação de causa e efeito.

Retorno ao Porto Seguro

Hoje me decidi por retomar o projeto deste blog.  Sua última publicação data de 10 de abril de 2009 - quase seis anos atrás.
Muita coisa modificou-se em minha fé, em minha vida de lá para cá.
Desse modo, muita coisa que está escrita antes de hoje eu nem creio mais.  Porém, não editarei nem modificarei nada.
Que o Senhor da graça continue nos dando refrigério e um porto seguro.  Uma caverna de adulão.