"Setenta semanas estão decretadas para o seu povo e sua santa cidade, como forma de conter a rebelião, dar fim ao pecado, arrancar o crime pela raiz, estabelecer justiça para sempre, cumprir a profecia e ungir o Lugar Santíssimo" (Daniel 9. 24)
As Escrituras estão cheias de narrativas sobre um tempo desértico na vida os fiéis. Quarenta anos de um povo liberto pelo deserto a caminho da terra prometida até que toda uma geração teimosa morra, 20 anos na vida de um Jacó até que ele retorne para casa mudado em Israel, 40 dias de jejum e tentação para Jesus antes do ministério, Paulo sozinho no deserto da Arábia antes de se voltar para a igreja.
A ideia de um tempo de comprometimento a fim de experimentar um processo de, poderíamos dizer, conversão, é cara nas Escrituras.
O texto de Daniel tenta reinterpretar a profecias de Jeremias acerca dos 70 anos de exílio babilônico que preconizou.
No fundo o que está em questão é a necessidade de um tempo de descida ao [fundo do] poço a fim de matar um determinado deus e religiosidade a fim de nos encontrarmos com uma nova espiritualidade que nos apresente um Deus mais vivo, relevante e misterioso para o nosso tempo.
Penso ter sido essa experiência de morte de deuses e espiritualidades datadas, comunitária e individualmente, que está por trás desses tantos relatos sobre tempos de deserto nas Escrituras. O tempo da dúvida, da crise, do poço parece ser uma constante na vida do povo e do fiel. Mais que isso: parece ser fundamental. A reinvenção de uma fé mais livre e relevante passa pela experiência de matar quaisquer formatos anteriores, quaisquer concepções de divindidade e religiosidade que não nos digam mais respeito. Antes de uma fé mais honesta precisamos da morte de uma fé que já não responde mais às angústias do tempo presente.
Esse é o deserto.
Há quase três anos vivo dividido entre Fortaleza, onde trabalho, e Natal, onde mora minha família. Mesmo antes disso comecei a descida, mas ela foi ainda mais radical até me parecer ter tocado o fundo do poço depois de ter vindo a Fortaleza.
A caminhada de volta, em uma nova fé, começou a partir daí. O meu deus morreu bem morto e uma nova fé começou a emergir, aqui e em contato com os irmãos que me hospedaram e com a igreja que me abrigou.
Agora que a possibilidade de retorno a Natal se evidencia (após vencermos na justiça federal em primeira instância processo que movemos por uma permuta com colega da UFRN), sinto que cheguei aqui um Jacó, lutei com Deus e com minhas incredulidades e posso voltar para a minha terra um Israel.
Como foi a experiência de Jacó, como foi a experiência do povo no deserto ou no exílio, encontrei aqui, no meu deserto e exílio, um Deus pelo qual vale a pena viver.