22.5.15

Uma nova fé

"Setenta semanas estão decretadas para o seu povo e sua santa cidade, como forma de conter a rebelião, dar fim ao pecado, arrancar o crime pela raiz, estabelecer justiça para sempre, cumprir a profecia e ungir o Lugar Santíssimo" (Daniel 9. 24)

As Escrituras estão cheias de narrativas sobre um tempo desértico na vida os fiéis. Quarenta anos de um povo liberto pelo deserto a caminho da terra prometida até que toda uma geração teimosa morra, 20 anos na vida de um Jacó até que ele retorne para casa mudado em Israel, 40 dias de jejum e tentação para Jesus antes do ministério, Paulo sozinho no deserto da Arábia antes de se voltar para a igreja.
A ideia de um tempo de comprometimento a fim de experimentar um processo de, poderíamos dizer, conversão, é cara nas Escrituras. 
O texto de Daniel tenta reinterpretar a profecias de Jeremias acerca dos 70 anos de exílio babilônico que preconizou.
No fundo o que está em questão é a necessidade de um tempo de descida ao [fundo do] poço a fim de matar um determinado deus e religiosidade a fim de nos encontrarmos com uma nova espiritualidade que nos apresente um Deus mais vivo, relevante e misterioso para o nosso tempo.
Penso ter sido essa experiência de morte de deuses e espiritualidades datadas, comunitária e individualmente, que está por trás desses tantos relatos sobre tempos de deserto nas Escrituras. O tempo da dúvida, da crise, do poço parece ser uma constante na vida do povo e do fiel. Mais que isso: parece ser fundamental. A reinvenção de uma fé mais livre e relevante passa pela experiência de matar quaisquer formatos anteriores, quaisquer concepções de divindidade e religiosidade que não nos digam mais respeito. Antes de uma fé mais honesta precisamos da morte de uma fé que já não responde mais às angústias do tempo presente. 
Esse é o deserto.
Há quase três anos vivo dividido entre Fortaleza, onde trabalho, e Natal, onde mora minha família. Mesmo antes disso comecei a descida, mas ela foi ainda mais radical até me parecer ter tocado o fundo do poço depois de ter vindo a Fortaleza.
A caminhada de volta, em uma nova fé, começou a partir daí. O meu deus morreu bem morto e uma nova fé começou a emergir, aqui e em contato com os irmãos que me hospedaram e com a igreja que me abrigou. 
Agora que a possibilidade de retorno a Natal se evidencia (após vencermos na justiça federal em primeira instância processo que movemos por uma permuta com colega da UFRN), sinto que cheguei aqui um Jacó, lutei com Deus e com minhas incredulidades e posso voltar para a minha terra um Israel. 
Como foi a experiência de Jacó, como foi a experiência do povo no deserto ou no exílio, encontrei aqui, no meu deserto e exílio, um Deus pelo qual vale a pena viver.

21.5.15

Ossos secos e uma nova vida espiritual

"Então ele me disse: 'Profetize a estes ossos e diga-lhes: Ossos secos, ouçam a palavra do Senhor! Assim diz o Soberano, o Senhor, a estes ossos: Farei um espírito entrar em vocês, e vocês terão vida'". (Ezequiel 37:4-5 NVI)
Pensava sobre esse conhecido texto de Ezequiel 37 hoje.
Conhecidíssimo texto, pregado tantas vezes em contextos de avivamento ou de experiências carismáticas, mas que também pode nos convidar a refletir sobre outras coisas.
Tenho conversado - e, por isso, refletido - sobre a vida religiosa comunitária e individual dos cristãos nos dias atuais. É como se, de um lado, houvesse uma crescente desilusão contra a religião dos pais que não responde mais às demandas e angústias da contemporaneidade, e de outro se buscassem saídas e alternativas a tal situação.
Parece o contexto de Ezequiel. Ele era um profeta do exílio, levado à Babilônia em uma das primeiras levas de judeus, antes mesmo da destruição do templo de Jerusalém e da deportação final. 
Desde o início de seu livro ele vai desenhando um cenário terrível para os judeus e sua religião. Lá no capítulo 8, por exemplo, ele é levado em uma visão a Jerusalém, até o templo, e por trás de um buraco cavado na parede vê toda sorte de abominação religiosa e espiritual, denunciando uma religião que é usada pelo poder para submeter o povo, mantendo um determinado discurso moral e ascético que esconde todo tipo de sujeira é mentira manipulativa em detrimento dos fiéis. Ovelhas, afinal, sem pastores.
Essa religião que promovia escravidão, alienação e dominação se esmigalhou com a destruição do templo e o exílio sob Nabucodonosor. Sedecias, o último rei, tenta fugir ao cerco do rei babilônico, é capturado e, antes de ter seus olhos vazados e levado prisioneiro, assiste à decapitação de seus filhos.  O templo queima. A Arca se perde para sempre.
Ezequiel viu isso: ele viu a Glória de Iahweh deixando o templo e em seguida Jerusalém. Era o fim dessa religião dos pais.  Ela não serve mais, ela não responde mais, ela não presta mais.
É no contexto da restauração que surge a profecia do vale dos ossos secos.
Ela tem duas etapas. Primeiro, uma restauração formal, que gera corpos a partir de ossos, mas sem vida.
Em seguida, Ezequiel profetiza para que o Espírito venha e traga vida aos corpos.
Quando leio esse texto em dias de decepção, mágoa e frustração contra as igrejas e, de outro lado, dias de igrejas que promovem a si mesmas mas nada do evangelho libertador do Reino, me identifico. E para mim o texto aponta um caminho de dois passos para uma nova espiritualidade e uma nova vivência de fé comunitária.
Primeiro: é preciso cria uma nova forma. A forma antiga, que aliena, mata, sufoca, é um vale de ossos secos. Mesmo que o vale nem se perceba assim. 
Por que as pessoas se frustram e abandonam a fé? Porque procuram vida relevante e só encontram ossos secos em nossas comunidades. Ossos secos, que batem uns contra os outros, são capazes de fazer muito barulho e chamar a atenção. Mas não têm vida nem representam nada na vida.
Segundo: uma forma correta sem a vida infundida pelo Espírito também não serve muito bem porque é vazia. É preciso que o Vento sopre.
E que vida o Espírito traz? Compromisso com a vida. Fruto do Espírito. Testemunho do Reino. 
Diz, na versão da Bíblia A Mensagem, o texto de Gálatas sobre o fruto do Espírito: 

"O que acontece quando vivemos no caminho de Deus? Deus faz surgir dons em nós, como frutas que nascem num pomar: afeição pelos outros, uma vida cheia de exuberância, serenidade, disposição de comemorar a vida, um senso de compaixão no íntimo e a convicção de que há algo de sagrado em toda a criação e nas pessoas. Nós nos entregamos de coração a compromissos que importam, sem precisar forçar a barra, e nos tornamos capazes de organizar e direcionar sabiamente nossas habilidades".(Gálatas 5. 22-23)

Outro texto que pode nos dar pistas do que podemos esperar da vida do Espírito Santo em nossas vidas é Isaías 61:

"O Espírito do Soberano, o Senhor, está sobre mim, porque o Senhor ungiu-me para levar boas notícias aos pobres. Enviou-me para cuidar dos que estão com o coração quebrantado, anunciar liberdade aos cativos e libertação das trevas aos prisioneiros" (Isaías 61:1 NVI)

Como disse pregando domingo, o Espírito não vem sobre nós para nos tornarmos super-homens todo-poderosos. Ele vem para nos dar integridade de vida para o serviço como testemunha - um mártir que vive pelo que crê - do Reino de Deus.

É nessa dimensão que vejo também a visão de Ezequiel 47, do rio que corre desde o Novo Templo levando vida ao deserto e até restauração ao mar Morto: o Rio da Vida corre a partir de nós nessa nova dimensão de vida de fé espalhando vida, libertação, transformação a partir de nós.
Qualquer nova fé que atenda às demandas e angústias contemporâneas deve, a meu ver, repercutir da experiência comunitária para a transformação do mundo, levando a toda parte essa vida. E de minha parte percebo que esse Vento já está soprando mundo afora.

20.5.15

Tão profundo

Ontem dei uma entrevista a Nathanael, cujo conteúdo em geral deixarei privado. 
Mas, acho, foi uma das primeiras vezes que verbalizei alguns aprendizados recentes sobre meu amor por meu pai e minha relação com ele.
Já disse algumas vezes que o ter me tornado pai mudou a minha compreensão acerca de meu pai. Em resumo, se antes eu me lamentava por ter perdido tantos momentos de intimidade com meu pai por sua ausência, depois de Alice passei a lamentar por meu pai ter perdido tantos momentos de paternidade comigo. 
Outra coisa que entendi nos últimos anos é que, para alguém do tempo e da luta de meu pai, amar era ser clandestino. Quer dizer: fazia parte das consequências de sua luta contra a ditadura e por mais justiça manter as pessoas mais importantes e frágeis de sua vida afastadas - assim como ele fez ao optar pela clandestinidade em 69 e, depois, quando nem todo mundo sabia ou soube de suas ações no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. A clandestinidade protege quem realmente importa na vida do revolucionário.
Essas percepções ajudam no meu atual mergulho na dimensão espiritual da vida porque me ajudam a compreender de uma maneira nova minhas relações com o Deus que é Pai.
Se eu aprendo que o Pai representa a Lei e os limites dados aos filhos na infância, aprendo que seu objetivo é que esses filhos não aprendam a obedecer cegamente, mas encontrem amor e saibam pensar. Esse é o meu desejo como pai de Alice. E vejo ser essa a caminhada de Deus, o Pai, conosco.
Se há infância da fé, se somos crianças espirituais, precisamos de um Pai que seja legislador de nossas vidas. Até que passemos por aquela experiência de matar o Pai sobre a qual falei outro dia.
A partir desse momento, a gente volta a uma experiência com o Pai, mas que é bem diferente daquela de antes. 
Assim como posso reencontrar meu pai em uma relação de amor, amizade, companheirismo, que me impacta e me marca de uma maneira ainda mais profunda, depois de abandonar essa fé infantil e legalista, matar o Pai, encontro uma espiritualidade ainda mais rica e profunda, uma relação mais amorosa e honesta, um coração mais inflamado e experiências mais marcantes e [e]ternas.
Mais poesia, mais beleza e amor.
"É tão profundo, tão imenso e cobre-nos
É furioso, poderoso e abraça-nos
Só Ele pode devolver a vida aos corações"
https://youtu.be/zOc855DIZyk