Se o Filho os libertar, vocês serão, de fato, livres.
João 8. 36.
Como nunca na minha vida antes, tenho sido nos últimos dias conduzido a refletir sobre uma realidade clara e difícil da Bíblia: o pecado escraviza, a graça liberta.
Temos discutido em vários contextos diferentes na nova comunidade da qual tenho participado a realidade, a injustiça e o incomodo da graça. Muitas vezes já falei sobre isso antes, mas tem entrado com muito mais força em meu pensamento e meu coração nos últimos tempos o que traz de transtorno à nossa mente retributiva a realidade da justiça de Deus que se manifesta na graça do evangelho. Funcionamos e pensamos que ser justo é retribuir com o bem, o bem feito; retribuir com punições as faltas cometidas. É assim que funcionam todos os sistemas de controle social que conhecemos. Nossa mente funciona assim. Esperamos, então, que na nossa relação com Deus o mesmo princípio ainda valha.
Por isso, nos cobramos muito no relacionamento com Deus. Sabemos que Deus é santo. Sabemos o quão pecadores somos. Sabemos o quão distantes dEle nos lançam os nossos atos. É inconcebível para nós que simplesmente isso não importa na relação com Deus. Sabemos sermos merecedores de punição, não de amor. Sabemos que o salário de nosso pecado é a nossa morte. Sabemos que Deus seria justo se nos punisse. Mas não é assim na dimensão da graça. Deus nos olha com graça e amor – imerecidos, é claro. Deus nos olha com os olhos da cruz. O amor de Deus nos alcança pela cruz. Ali, onde toda culpa foi apagada, todo pecado foi castigado. A partir de onde, não importa mais.
O desespero de Lutero, por muito tempo, foi perceber que só existe vida em um relacionamento com Deus. No entanto, Deus é santo e o homem é um miserável pecador. Por mais que o homem precise de Deus, então, é impossível ter um relacionamento com Deus. E Lutero se desesperava dessa realidade terrível – uma vez que só era possível conceber a justiça de Deus como uma retribuição implacável. Até que, um dia, se deparou com um texto revolucionário: Porque no evangelho é revelada, de fé em fé, a justiça de Deus, como está escrito: Mas o justo viverá da fé (Rm. 1. 17). A justiça de Deus não se revela em um retribuição implacável, mas no evangelho! Ou seja, a justiça de Deus se revela na cruz do Calvário. E não se vivencia de outra forma a não ser pela fé. De forma absolutamente gratuita. Não é preciso fazer nada, pagar nada ou sentir nada para se ter a liberdade ou o perdão: basta crer.
Isso nos incomoda demais. A realidade da graça fere o nosso senso de justiça. É como se para cada homicídio que fosse cometido de forma cruel nenhum criminoso jamais fosse punido com a cadeia – porque Jesus já está ocupando a sua cela!
Uma vez que a injustiça da graça nos inquieta, muitas vezes nos deixamos escravizar pelo pecado. Esses dias vi isso de uma maneira inteiramente inédita para mim. Conversando com um amigo, percebi que ele tem sido escravizado pelo pecado de uma maneira que eu nunca imaginei ser possível. Não falo da prática do pecado, mas da idéia do pecado. Incapaz de vivenciar a graça, ele se deixa dominar pelo senso de culpa e de pecado. Ele se sabe pecador mas não experimentou a realidade da graça – mesmo que seja pastor! Como se sabe pecador, se pune de tal maneira que se afasta da graça de Deus. Ele se condenou a não ter comunhão possível com o Pai porque se deixou escravizar pelo seu pecado. Ele se pune pelos pecados que têm cometido se afastando por si só da presença de Deus. Não entendeu que, na dimensão da graça, nossa comunhão com Deus não depende do que fazemos ou pensamos ou sentimos. Na dimensão da graça que liberta, a comunhão com o Pai depende única e exclusivamente da cruz. E essa dependência é testemunha de que fomos salvos como pecadores, somos pecadores em nossa peregrinação e andamos com o Senhor enquanto pecadores que dependem e vivenciam o evangelho da graça. O povo de Deus não é um grupo de pessoas especiais – supersantos – mas é bando de pecadores que tenta encontrar uma melhor maneira de celebrar e festejar com Jesus. Pecadores que se sabem pecadores e se entregam à injustiça da graça para se fazerem um tanto melhores do que podem ser nas próprias forças.
Muitos de nós fizeram para si uma lista de coisas que precisam ser feitas – cumpridas – para que se sintam santos e próximos ao Pai. Muita igreja e muita teologia reforçam essa idéia. A idéia retributiva de que, caso não cumpra algo dessa lista – dessa Lei – serei rejeitado por Deus. Aos gálatas, Paulo escrevia contra essa idéia absurda diante da cruz de Jesus: Eu me recuso a rejeitar a graça de Deus. Pois, se é por meio da lei que as pessoas são aceitas por Deus, então a morte de Cristo não adiantou nada! (...) Vocês começaram a sua vida cristã pelo poder do Espírito de Deus e agora querem ir até o fim pelas suas próprias forças? (...) Os que confiam na sua obediência à lei estão debaixo da maldição de Deus (Gl. 2. 21; 3. 3; 3. 10). Essa idéia nos escraviza ao pecado porque transforma – pelo menos para nós mesmos – o nosso pecado em algo maior que o amor e a graça de Deus que se deu em Cristo por nós à morte de cruz! Para muitos, os seus pecados são maiores que a graça de Deus. Mas é melhor lembrar do que nos diz João, e se deixar ser liberto pelo amor e graça de Jesus: Pois, se o nosso coração nos condena, sabemos que Deus é maior que o nosso coração e conhece tudo (1 Jo. 3. 20). Ser escravo do pecado é viver a punição de algo que Deus já perdoou e apagou. É se sentir culpado por algo de que Deus já não nos culpa. Por isso, conhecer a verdade é ser liberto do pecado. Porque conhecer a verdade é conhecer o perdão de Deus em Jesus Cristo.
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