9.12.16

A depressão de Jó

Finalmente, Jó quebrou o silêncio. Em voz alta, amaldiçoou a si mesmo:
“Apaguem o dia em que nasci. Esqueçam a noite em que fui concebido! Que aquele dia seja transformado em trevas, e que Deus, lá em cima, esqueça o que aconteceu. Apaguem-no dos livros! Que a escuridão mais sombria se apodere do dia do meu nascimento, seja envolto pela neblina e engolido pela noite.
Que as trevas dominem a noite em que fui concebido. Risquem-na do calendário, e que nunca mais seja contada como qualquer outro dia! Que aquela noite seja reduzida a nada. Que nenhum grito de alegria daquela noite jamais seja ouvido. Que os mestres em maldição amaldiçoem aquele dia. Que seja engolido pelo monstro do mar, o Leviatã. Que suas estrelas da manhã perco o brilho, e fiquem à espera da luz do dia que nunca vem! Que nunca mais vejam a luz do amanhecer, porque não impediu que eu saísse do ventre da minha mãe, que eu vivesse esta vida cheia de aflições”
Jó 3. 1-10

Há diversas formas possíveis de se abordar o livro de Jó. Gosto de muitas delas.

Gosto de pensar, por exemplo, que Jó é um servo de Deus irrepreensível, íntegro, que evita o mal (Jó 1. 8; 2. 3), nas palavras ditas pelo próprio Deus, mas não é israelita! É como se o Senhor estivesse dizendo, ao inserir seu livro no meio de muitos outros, exclusivistas e defensores de que somente aos israelitas cabia conhecer a Deus, que o conhecimento de Deus ultrapassa as barreiras nacionais, raciais, culturais e religiosas.

Você pode olhar para o texto, também, a partir do capítulo 42 e entender que não somos capazes de compreender todas as coisas a respeito do Senhor e de sua ação no mundo.

O mais comum é olharmos para o texto sob o viés do sofrimento: Jó sofreu - e muito. Perdeu bens, família, saúde. Recebeu três amigos que queriam convencê-lo que se ele sofria era por sua própria culpa - adeptos da teologia da retribuição. No entanto, o leitor do livro sabe que isso não faz sentido, uma vez que é o próprio Deus quem diz, por duas vezes, que Jó é um servo íntegro, fiel, irrepreensível. O livro nos ensina que o sofrimento é parte da vida humana e não culpa de nenhum pecado necessariamente. E no sofrimento é melhor se livrar de amigos que parecem saber de tudo e se aproximar daqueles que podem só oferecer um ombro para você chorar.

Mas eu passei a olhar para o livro de Jó sob a perspectiva da depressão.

Depois de tanta dor, sofrimento e fatos inexplicáveis da vida, Jó se torna alguém depressivo. Ao lado de outros personagens bíblicos, Jó pede a morte. E de uma maneira bem radical - ele queria eliminar o dia em que foi concebido, a data em que nasceu, deseja ter sido um aborto que nunca tivesse chegado à luz.

É a expressão do mais profundo vazio existencial, da mais profunda incompreensão com os fatos da vida, da dor mais insuportável.

O seu luto e sua perda são de dimensão inconcebível e penso que seriam devastadores para qualquer um de nós. Não apenas perdeu bens e saúde, mas viu a morte dos seus sete filhos. Qual mesmo a razão de continuar vivendo? Qual mesmo a graça da vida nessas circunstâncias?

Jó não superou o limite sugerido por sua esposa: "Então sua mulher lhe disse: 'Você ainda mantém a sua integridade? Amaldiçoe a Deus, e morra!’" (Jó. 2. 9). Jó não se tornou suicida, mas pedia a Deus que o excluísse do mundo.

O depressivo não deseja morrer - tudo o que ele quer é ter seu sofrimento aliviado. No início do capitulo 3, Jó tem clareza que só tem um caminho de ter sua dor aliviada: deixando de existir. Sua dor é de uma dimensão existencial incomensurável e começa a se manifestar na forma de desabafo. A Deus e aos amigos da onça que o cercaram.

Os seus amigos só podiam fazer sua situação piorar, enquadrando a situação de sofrimento nas suas teorias e ideologias. Teorias, ideologias e teologias enquadram fatos da vida, mas não são capazes de dar conta da própria vida. A coisa mais importante que uma pessoa pode fazer para ajudar um depressivo é se despir de suas certezas, manuais, crenças e juízos. Os amigos de Jó foram capazes de transformar a religião em elemento opressivo que ampliava o impacto da depressão - e não como forma de espiritualidade que lhe ajudasse a lidar com a dor e encontrar o caminho de saída dela.

Entre várias possibilidades de construirmos saídas para a dor da depressão, Jó investiu num caminho de fé e confiança em Deus. É a Ele que se dirige. É dele que quer resposta. É diante dele que deseja estar. É a Ele que quer ouvir.  Ele sabe que seu Redentor vive e se levantará sobre a terra (Jó. 19. 25).

Certamente, estava em dor, sofrimento e confuso, mas havia uma honesta e sincera busca espiritual em Jó. Era a Deus que ele buscava no meio de sua dor. Era dele que esperava uma solução, nem que fosse a morte.

Entregar a dor aos cuidados de Deus é fundamental. Não podemos ter certeza de que Deus curará a nossa dor, mas podemos ter certeza de que Ele nos ajudará a caminhar com a dor, sustentando-nos nas suas mãos, carregando-nos quando necessário. Podemos não ver a cura da dor, mas podemos estar certo que será uma dor muito mais suportável se estivermos conscientes de que Deus nos leva, vai conosco, conforta o nosso coração. Talvez não vejamos ainda a cura, mas veremos o cuidado amoroso de Deus - um passo fundamental, cuidado e amor, para sermos restabelecidos de nosso sofrimento.

"Lancem sobre ele toda a sua ansiedade, porque ele tem cuidado de vocês” (1 Pe 5. 7).

Saber que há um Pai amoroso que cuida de nós é extremamente importante para conseguirmos nos livrar da dor do vazio existencial depressivo.

Alguns domingos atrás visitei uma igreja aqui em Natal. O louvor me apresentou uma canção, versão, que me ajudou a enfrentar minha própria situação de sofrimento: “Bom, bom Pai” (“Good, good Father”).

És o bom, bom pai
É quem tu és, é quem tu és, é quem tu és
Sou amado por ti
É quem eu sou, é quem eu sou, é quem eu sou

Reconhecer em Deus um bom Pai e reconhecer em mim mesmo um filho que é amado por Ele - esta identidade - foi, talvez, o passo mais importante que dei no rumo de me livrar do sofrimento e dor que carregava por causa da depressão.

Por isso mesmo, podemos lançar sobre Ele.

Por isso mesmo, o Deus encarnado, o que podemos conhecer de Deus, nos desafiou:

“Vocês estão cansados, enfastiados de religião? Venham a mim! Andem comigo e irão recuperar a vida. Vou ensiná-los a ter descanso verdadeiro. Caminhem e trabalhem comigo! Observem como eu faço! Aprendam os ritmos livres da graça! Não vou impor a vocês nada que seja muito pesado ou complicado demais. Sejam meus companheiros e aprenderão a viver com liberdade e leveza” (Mt. 11. 28-30).

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