25.11.15

Mulheres como coisas, sexo e estupro na Bíblia

A Bíblia, em boa parte dos casos, não trata bem a pessoa humana. As mulheres são tratadas como propriedades dos homens.
Quando o mandamento proíbe cobiçar a mulher do próximo ela não passa de um objeto entre outros de propriedade do próximo que podem ser objeto de cobiça.
Hoje estive pensando sobre sexo e estupro no AT.
Abraão tem uma escrava, Hagar, que vira sua escrava sexual, forçada a ter sexo com seu dono para lhe gerar um filho. Os autores do texto não tem nenhuma preocupação em denunciar o modo como o pai da fé trata aquela mulher.
Jacó usa duas escravas para ter filhos.
Um e outro fazem uso de violência sexual como se fosse natural. E a Bíblia, em nenhum lugar, os recrimina. Para os seus autores, eles fizeram o que tinham o direito de fazer. Não pecaram.
Mas o episódio do qual muito me lembrei hoje se dá quando Absalão lidera uma revolta contra seu pai, Davi. Davi tinha um harém (ou seja, escravas sexuais a quem a Bíblia trata eufemisticamente de concubinas). Ao fugir de Jerusalém, Davi deixou algumas dessas mulheres para tomar conta do palácio.
Absalão, seguindo seus conselheiros, decide estuprar todas diante dos olhos da cidade inteira. Era um modo de afirmar que tomara o poder do pai tomando seu harém.
Para mim, a situação se agrava depois que Absalao é morto: ao retornar a Jerusalém, Davi decide trancafiar as concubinas - que depois de uma vida como escravas sexuais, haviam acabado de serem estupradas em via pública. As vítimas foram punidas porque o poder do rei precisava ser reafirmado. Nunca mais saíram às ruas.
Essas mulheres sem nome, sem rosto e sem vida não recebem uma palavra de defesa, apoio ou afeto de nenhum cidadao, do rei ou mesmo de qualquer outro autor biblico.
Hoje pensei que nós homens seguimos mantendo igual mentalidade.
Preciso urgentemente entender melhor e combater o patriarcado a partir de mim mesmo.

22.11.15

Texto da minha reflexão por ocasião do funeral de minha avó, Aurea Araújo Dantas

Este é o registro da descendência de Adão: Quando Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez;
homem e mulher os criou. Quando foram criados, ele os abençoou e os chamou Homem.
Aos 130 anos, Adão gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem; e deu-lhe o nome de Sete.
Depois que gerou Sete, Adão viveu 800 anos e gerou outros filhos e filhas.
Viveu ao todo 930 anos e morreu.
Aos 105 anos, Sete gerou Enos.
Depois que gerou Enos, Sete viveu 807 anos e gerou outros filhos e filhas.
Viveu ao todo 912 anos e morreu.
Aos 90 anos, Enos gerou Cainã.
Depois que gerou Cainã, Enos viveu 815 anos e gerou outros filhos e filhas.
Viveu ao todo 905 anos e morreu.
Aos 70 anos, Cainã gerou Maalaleel.
Depois que gerou Maalaleel, Cainã viveu 840 anos e gerou outros filhos e filhas.
Viveu ao todo 910 anos e morreu.
Aos 65 anos, Maalaleel gerou Jarede.
Depois que gerou Jarede, Maalaleel viveu 830 anos e gerou outros filhos e filhas.
Viveu ao todo 895 anos e morreu.
Aos 162 anos, Jarede gerou Enoque.
Depois que gerou Enoque, Jarede viveu 800 anos e gerou outros filhos e filhas.
Viveu ao todo 962 anos e morreu.
Aos 65 anos, Enoque gerou Matusalém.
Depois que gerou Matusalém, Enoque andou com Deus 300 anos e gerou outros filhos e filhas.
Viveu ao todo 365 anos.
Enoque andou com Deus; e já não foi encontrado, pois Deus o tomara para Si.
Gênesis 5:1-24

O autor do Eclesiastes, quando reflete sobre a vida, nos diz que "É melhor ir a uma casa onde há luto do que a uma casa em festa, pois a morte é o destino de todos; os vivos devem levar isso a sério!”
Na morte, aprendemos mais sobre a vida, seu valor, seu sentido.
Lembro também do salmista que nos estimula, no Salmo 90, "a contar os nossos dias para que o nosso coração alcance sabedoria”.

Por isso nos reunimos aqui para nos despedirmos, para manifestarmos o nosso amor a dona Áurea, que nasceu Aura Celeste. Estamos aqui para agradecer por sua vida.  
As vezes, vovó reclamava de algo na história de vida dela - que não foi uma vida fácil - e eu fazia questão de lembrá-la: “Mas vó: se você não tivesse vivido isso, não estaríamos aqui”.
Não se trata de sina, nem de destino. Mas se trata de compreender e viver intensamente a vida.  Como ela viveu.

Pensando no que dizia o salmista sobre contar os dias, ontem, ao entendermos que a trajetória de Dona Áurea chegava ao fim, fiz umas contas.
Dona Áurea faleceu na madrugada do seu dia de número 34071. Viveu, bem vividos, 93 anos, 3 meses e 10 dias.  
Bastante vida. 

Sempre gostei muito do texto de Gênesis 5, que li no início.

Trata-se de uma genealogia mas é bem mais que uma genealogia. Para mim, uma lição sobre a vida.




Há um refrão no texto, uma mensagem constante e repetitiva, marcante para nós: "Viveu [...] anos e morreu".
E morreu.

Com Alberto Camus aprendo sobre a ideia da absurdidade: a vida não tem nenhum sentido diante da morte, que é a nossa única certeza.  É preciso um projeto, a construção de um sentido, de um objetivo, de uma razão.

Caminhamos na vida em busca de um sentido.

Uma das razões da vida para a vida pode ser o legado.  Lembro de Jeorão, rei citado em 2 Crônicas 21, de quem se diz que morreu "sem que ninguém o lamentasse" (v. 20).  Jeorão foi alguém que morreu sem deixar um legado. Sua morte não fez falta porque sua vida não fez diferença.  

A tentativa de fazer a vida se prolongar após a morte com base em um legado é um dos nossos mais intensos projetos.  Porque todo mundo morre.


Gênesis 5 nos diz que todo mundo morre. 
Menos um. 
Enoque resiste à morte e vive.  

Enoque andou com Deus; e já não foi encontrado, pois Deus o tomara para Si

A diferença em Enoque é que ele permanece vivo porque já não é ele quem vive, mas Deus nele. 

Não nos fala necessariamente de imortalidade, mas de permanência. 

Seu legado é a permanência, sua vida permanecendo pela marca que deixou.

Vovó se vai deixando aqui suas marcas. 

Cinco filhos (além de Rita Maria que faleceu bebê), nove netos (além de Elisabete que faleceu aos 17 anos). Já são quatro bisnetos. 

Neles, em nós, sua vida continua. Em nossas memórias, em nossas histórias, em nossas lembranças, em nosso amor, carinho. Até mesmo na dor e na saudade. 

Dona Áurea permanece.

Não era perfeita, mas era autêntica, como gostava de se referir a si mesma. 

Tenho algumas lembranças afetivas bem antigas de minha avó.
Lembro que gostava de ir dormir na casa dela, nos fins de semana. 

Gosto da lembrança de deitar em seu colo, nos sábados à noite, enquanto ela assistia o programa de Agnaldo Rayol na velha tevê preto e branco a válvula. 

Amava o cheiro e comer seu arroz refogado com cenouras.
Lembro de irmos à praia de Ponta Negra e lembro de sua roupa e de seus óculos de sol elegantes.

Lembro de suas almôndegas de carne recheadas com pão de forma de leite. Que delicia! 

Por meio dela, o evangelho chegou a nosso pequeno núcleo familiar.  

Foi a primeira a se batizar lá em casa. 

Gostava de música. Gostava de cinema. 

Era tão performática, como disse Kênia mais cedo, que sempre pediu que seu velório tivesse como música de fundo o Réquiem de Mozart.

Amava Zorba, o grego. Gostava de O violinista no telhado. Chorava com saudades em Pedaço de mim - as canções que vocês ouviram aqui desde cedo.

Tinha um único irmão, Edinor, tio Biodo, com quem brincava sobre qual dos dois iria primeiro. Ganhou a aposta, porque Biodo partiu antes.
Adorava votar. E quando começou declínio, semanas antes da eleição de 2010, ficou muito chateada por não poder votar em Dilma.

Essa é sua permanência conosco. 

Ela está aqui - sempre estará.  

Ela se vai e nós lamentamos muito.

Só vamos desobedecê-la em uma coisa: não vó, sua lápide não vai dizer “aqui jaz uma pessoa muito contrariada”, nem vamos doar seu corpo para a ciência. 

Precisamos do nosso luto, de nossa despedida, precisamos dizer adeus. 

É no humano que vemos Deus encarnado.  Foi isso que Jesus fez conosco, o Homem-Deus. Ele nos ensinou que Deus só pode ser conhecido a partir de nós em nossa humanidade.

Um filme infantil de que gostei muito foi "Festa no céu": os mortos, na lenda mexicana, vivem na terra dos lembrados ou morrem na terra dos esquecidos. E o amor, bem, ele é capaz de fazer viver a vida.

Essa é a ideia.  Sempre gostei de pensar em que Enoque é diferente para que sua vida sobreviva à morte.  Ele já não era encontrado porque Deus o tomou para Si.  

Se há projeto para enfrentar a absurdidade da morte, se há um legado possível, ele se dá quando nós não somos mais encontrados porque Deus nos tomou. Olham para nós e O veem.  Ainda que morramos, viveremos.  No legado. No projeto. Na memória. Na terra dos lembrados. A nossa vida faz a diferença e, portanto, se prolonga.

Por isso temos certeza - seu legado, sua permanência, sua memória, nossas lembranças nos provam - que você andou com Deus; e já não foi mais encontrada, pois Deus a tomou para Si.

Tudo agora é mais calmo. Como disse meu amigo Elienai, se no início Deus era o verbo, no fim Ele é só o abraço.


Que nós aprendamos a contar nossos dias e alcançar coração sábio.

12.11.15

Minha participação no Seminário Ler Faz Crescer da Prefeitura de Ipanguaçu

Fui convidado esta tarde para participar do 3o Seminário Ler Faz Crescer, da Prefeitura de Ipanguaçu (RN). Era a mesa "Diversidades Religiosas, Educação e Direitos Humanos: o desafio da escola frente à discriminação e à violência”. Minha condição de saúde me impediu de ir a Ipanguaçu, infelizmente. No entanto, eu gravei a minha participação para a mesa:

24.10.15

O meu Deus é um Deus injusto

Muita fé religiosa e muita convicção teológica se elabora a partir da ideia de que existe um Deus justo, cuja justiça tarda, mas não valha.
Justiça, aqui, sempre entendida como retributiva, como sendo resultado de um sistema de leis que, quando quebradas, precisam sofrer sanções. 
A própria religiosidade sacerdotal e legalista do AT se elaborou sobre esse ponto. 
Elaborações teológicas posteriores continuaram neste caminho. Teologias cristãs e protestantes afirmaram que o sacrifício de Jesus era necessário para resgatar os eleitos da condenação da lei. A justiça tinha de ser feita, redributiva como se crê, para que a graça e o amor fossem alcançados.
Ainda que tal concepção tenha sentido numa lógica humana, contradiz por inteiro a noção de graça e de amor infinitos e imensuráveis. Se olho para Jesus, sua encarnação (Deus se fazendo um de nós), sua vida é sua morte falam de um Deus que, se for justo, não o será para garantir que recebamos benefícios ou punições a partir dos nossos atos. O Deus que se encarna em Jesus ao se tornar um de nós já rompeu essa ideia na base. Ele vem até nós, nos amar, perdoar e salvar de graça. Não exige nenhuma expiação no lugar.
Mas o texto sobre o qual pensei nesses dias emerge da tensão da teologia do templo com a teologia viva e profética do povo do AT. É Jó.
Jó é um estrangeiro. Não é judeu. Para a teologia judaica do templo só no templo do Deus de Jerusalém era possível conhecer a Deus.
Mas quando começamos o texto, lemos Deus dizer duas vezes que Jó é um homem justo, correto, santo. O texto nos prepara: Jó vai sofrer mas não é culpado. O sofrimento é contingência da vida humana, não é resultado de seu pecado.
Seus quatro amigos (começam três e depois se introduz Eliu do nada) passam o livro todo tentando convencê-lo que sofre porque pecou contra Deus, porque  Deus é justo e, portanto, qualquer sofrimento ou dor só pode nos abater como resultado de nossos próprios erros. Um Deus cuja justiça é retributiva. Esse Deus aparece na teologia calvinista e no Kardecismo, por exemplo. 
Mas o leitor de Jó sabe que seus amigos estão errados. Jó nada fez para merecer sofrer. 
Aí, no fim do livro, depois da restauração,Deus deixa isso ainda mais evidente:
“Depois que acabou de falar com Jó, o Senhor disse a Elifaz, da região de Temã: — Estou muito irado com você e com os seus dois amigos, pois vocês não falaram a verdade a meu respeito, como o meu servo Jó falou.”
Jó 42:7
O que os amigos de Jó falaram não é a verdade a respeito de Deus. Deus não é esse da Justiça Retributiva que eles defenderam.  
Para quem pensa em um Justiça divina na base do "tarda, mas não falha", "o que a gente faz volta para a gente", o Deus revelado na Bíblia é injusto. Quem pensa em Justiça divina na base do Karma tem dificuldade em pensar num Deus que não é vingança, punição ou revanche.
Justiça para o  Deus que a Bíblia revela é igualdade. 
O enfrentamento e a destruição de todas relações de poder de exploração e desigualdade. É essa justiça a base de julgamento divino.
Se você espera um Deus que aja na base do "aqui se faz, aqui se paga", Jó desfaz sua ilusão.
E sei que é duro sair de tão ilusão porque deixar de crer na Justiça de Deus dessa forma exige de nós um triplo movimento: encarar a vida, assumir a responsabilidade por ela e se tornar agente da Justiça de um Deus que se encarnou para que conhecêssemos o caminho. O outro caminho, da fantasia de Deus e da Justiça Retributiva, é mais tranquilo e apaziguador porque exige de nós pouco mais do que seguir um manual de instruções.
“Antes eu te conhecia só por ouvir falar, mas agora eu te vejo com os meus próprios olhos.”
Jó 42:5

13.9.15

Na terra dos lembrados

Sempre gostei muito do texto de Gênesis 5. Trata-se de uma genealogia mas é bem mais que uma genealogia. Para mim, uma lição.
Há um refrão no texto, uma mensagem constante e repetitiva, marcante para mim: "Viveu [...] anos e morreu".
E morreu.
Em Camus aprendo sobre a ideia da absurdidade: a vida não tem nenhum sentido diante da morte, que é a nossa única certeza.  É preciso um projeto, a construção de um sentido, de um objetivo, de uma razão.
Uma das razões para a vida pode ser o legado.  Lembro de Jeorão, rei citado em 2 Crônicas 21, de quem se diz que morreu "sem que ninguém o lamentasse" (v. 20).  Jeorão foi alguém que morreu sem deixar um legado. Sua morte não fez falta porque sua vida não fez diferença.  A tentativa de fazer a vida se prolongar após a morte com base em um legado é um dos nossos mais intensos projetos.  Porque todo mundo morre.
Gênesis 5 nos diz que todo mundo morre. Menos um. Enoque resiste à morte e vive.  Não apenas no legado ou na lembrança.
Vimos esta tarde o doce "Festa no céu": os mortos, na lenda mexicana, vivem na terra dos lembrados ou morrem na terra dos esquecidos. E o amor, bem, ele é capaz de fazer viver a vida.
Essa é a ideia.  Sempre gostei de pensar em que Enoque é diferente para que sua vida sobreviva à morte.  Ele já não era encontrado porque Deus o tomou para Si.  
Se há projeto para enfrentar a absurdidade da morte, se há um legado possível, ele se dá quando nós não somos mais encontrados porque Deus nos tomou. Olham para nós e O veem.  Ainda que morramos, viveremos.  No legado. No projeto. Na memória. Na terra dos lembrados. A nossa vida faz a diferença e, portanto, se prolonga.
Viveu ao todo 905 anos e morreu
Gênesis 5:11
Viveu ao todo 905 anos e morreu
Gênesis 5:11

1.8.15

Um deus que não merece ser crido

Textos como o capítulo 10 do Segundo Livro de Reis são um desafio para certa perspectiva teológica que ainda tem vez no nosso mundo.
O texto relata uma perseguição implacável, sanguinária, contra uma religião e contra uma família real. Eu perco as contas de quantas centenas de pessoas são assassinadas pelo rei em nome de Deus. 
Cabeças são cortadas, fiéis são executados após o culto, corpos são expostos de maneira performática. Há um reflexo nas ações do Estado Islâmico de cenas como as descritas no livro bíblico. Se alguém contasse o capítulo 10 de 2 Reis num relato visual muita gente acreditaria se tratar de uma ação daqueles muçulmanos radicais.
Mas não são. 
São ações de seguidores de Iahweh. Feitas em seu nome. Relatadas como executadas por Sua ordem. São, acima de tudo, canônicas para cristãos e judeus.
Aqui o problema teológico.  Se o texto diz que Jeú agiu obedecendo à ordem de Deus, os fundamentalistas vão defender até a própria morte que foi isso mesmo que aconteceu: aquele sangue foi derramado porque Deus quis e mandou.
Se foi isso que aconteceu, prefiro negar tal deus.  Se o relato deve ser tomado como inerrante, eu abjuro esse deus. Eu apostato da fé nele. E digo para qualquer um: esse deus é o mesmo que faz os muçulmanos do Estado Islâmico fazerem o que fazem com aqueles que não pensam e creem como eles. É esse deus que faz com que homens queimem vivos prisioneiros, degolem-nos, treinam crianças para matarem. Fazem isso para cumprir a vontade de deus - como Jeú.
Se os fundamentalistas estiverem certos esse deus é indigno de ser crido, louvado, servido.
Só se pode sobreviver a um texto assim se eu entender que, como o Estado Islâmico faz, os seguidores de Jeú criaram uma justificativa teológica para a sua perversidade: atribuíram a Deus a responsabilidade pelo seu massacre. Deus não tinha nada a ver com aquilo!
Fundamentalistas - cristãos, muçulmanos, judeus - continuam fazendo o mesmo: para justificar suas perversidades, atribuem-nas à ordem, palavra ou vontade de Deus. Desse deus, quero morrer ateu.

22.7.15

A vida é breve

Eu tenho uma causa pela qual viver e tenho urgência porque a vida é breve.
Há alguns poucos anos, encarei o desafio de ser coerente, ainda que não imutável, com o que penso, creio, defendo. Assumo a cada dia o compromisso de não permitir que normas de conduta, cláusulas de estilo ou etiqueta, conduzam minha prática mais que minhas crenças e minhas ideias.
Falo-as com urgência. A vida que vale a pena pode se acabar a qualquer momento e não quero ir sem ter dito tudo o que poderia.
Escolho as palavras que melhor traduzem o que analiso, creio ou penso - ainda que a linguagem, lugar do deslize, reserve lugares importantes ao inconsciente.
Mas não espere de mim um silêncio condescendente ou a fuga da disputa. Importa menos ser querido ou ter o prazer do debate do que deixar claro o que defendo.
Encontrei uma ideia pela qual vale a pena viver. Vivo por ela.
Ela motiva minhas escolhas.
Ela se alimenta de meu amor ou, antes, do Amor.
Você vai me ver discutindo justiça social e ideias de revolução porque o Amor para mim impulsiona um mundo mais justo que afasta de seu centro ideias de domínio, controle e poder. O Amor se opõe ao mundo que se organiza em torno desses centros de poder e você vai me ver nessa disputa. A vida vale a pena e ela é breve.
Você vai me ver lutar por um Amor que abdica de ser o deus-nas-alturas. O que tive foi um encontro libertador com esse Amor personificado em Jesus; quero dizer aos outros que eles podem ter também. Quero partilhar aos demais uma ideia pela qual vale a pena viver. E vocês me verão fazendo isso.
Não tenho um prazer especial na polêmica.  Mas tenho prazer em deixar claro que vale a pena viver com liberdade e autonomia no encontro com o Deus que se encarna na vida!
Se disputo a questão LGBT, já disse isso, é porque ela aponta para questões muito mais importantes na fé que dizem respeito à leitura da Bíblia e a teologia que nos move como cristãos. Desejo ardentemente que nos livremos das formas fundamentalistas!
Um ideia pela qual vale a pena viver. Um Amor mais real que qualquer amor. 
Espere de mim a luta e a coerência. Urgente. Porque sinto ter perdido muito tempo submetido a regras que escravizam. Tenho 36 anos e a vida é breve. Não sei quanto tempo mais terei para viver movido por tais ideias!

18.7.15

Bíblia como ponto de partida

Você quer ter como palavra final sobre a vida um conjunto diversos de textos escritos em um mundo entendido como finito, plano, feito para o homem, com um Deus fisicamente existente sobre o céu, por pessoas que falavam aramaico, hebraico e grego?
Não é óbvio que isso não faz sentido em um mundo que é apenas um pequeno planeta (entre oito) do sistema solar de uma pequena estrela da periferia de uma pequena galáxia entre cem bilhões de galáxias, em que se sabe que não há um Deus físico no céu, que um vulcão não é a ira de um Deus, um trovão não é a voz de Deus, que uma frente fria define a chuva (e não um Deus)? 
Para mim aqueles textos só fazem sentido se eu os encarar como relatos de como povos do passado tiveram suas experiências com Deus, o que pode nos inspirar. Aqueles textos são pontos de partida, não lugares de chegada em que se encerram as questões da vida.

24.6.15

A prática da libertação e um lugar no Reino

Isaías 58 me fala sobre libertação. Na verdade, fala sobre culto e práticas ascéticas - no caso, o jejum -, em sua relação com as práticas de justiça e libertação.

O terceiro Isaías esclarece que o culto, por si, nada significa. Iahweh não chama Seu povo para cultuar, mas para promover a justiça.
Tenho sempre a impressão que mensagens assim serão sempre atuais - porque tenho a impressão que sempre haverá uma força gravitacional que puxará os cristãos para uma prática de fé ensimesmada, uma vez que ela é melhor do que o risco que se corre quando se decide seguir a prática de jejum que o Senhor diz escolher:  "romper os grilhões da iniquidade, soltar as ataduras do jugo, por em liberdade os oprimidos, despedaçar totalmente os jugos, repartir o pão com o faminto, recolher em casa os desabrigados, vestir o nu e não fugir de sua responsabilidade frente aos que necessitam".
A vida de fé não é aquela que ocorre no culto ou em seus momentos devocionais. O terceiro Isaías não é condescendente com ninguém: a vida de fé é necessariamente uma vida de compromisso com a libertação.
Por isso mesmo é que um cristão deve chorar quando vê aqueles que se dizem seus representantes defendendo ideias e práticas que nada têm a ver com a essência do que deveria ser sua prática de fé.
São cristãos os que fazem discursos apaixonados pelo direito de andar armados, pela redução da maioridade penal, pela violenta repressão da juventude marginalizada.  São cristãos que lutam contra os direitos de camadas e camadas de excluídos, especialmente os LGBTs.
De cortar o coração cenas de cristãos celebrando no Congresso a aprovação da redução da idade penal na Comissão Especial da Câmara. De indignar a alma as imagens de cristãos gritando palavras de ordem contra sua mais recente invenção: a ideologia de gênero, uma desculpa perversa e piedosa para que seu direito de ser homofóbico e promover a violência simbólica contra gays, lésbicas e trans - aquela que alimenta todos os dias a morte de LGBTs Brasil afora.  Fazem o mal contra as minorias achando que, com isso, fazem culto a Deus. São como ovelhas sem pastor, perdidos nas mensagens de ódio que os afastam daquilo que o Senhor anuncia como seu culto e sua fé.
Sua história me faz lembrar de uma parábola que Jesus conta no evangelho de Lucas:
"“Esforcem-se para entrar pela porta estreita, porque eu digo a vocês que muitos tentarão entrar e não conseguirão. Quando o dono da casa se levantar e fechar a porta, vocês ficarão do lado de fora, batendo e pedindo: ‘Senhor, abre-nos a porta’. “Ele, porém, responderá: ‘Não os conheço, nem sei de onde são vocês’. “Então vocês dirão: ‘Comemos e bebemos contigo, e ensinaste em nossas ruas’. “Mas ele responderá: ‘Não os conheço, nem sei de onde são vocês. Afastem-se de mim, todos vocês, que praticam o mal!’ “Ali haverá choro e ranger de dentes, quando vocês virem Abraão, Isaque e Jacó e todos os profetas no Reino de Deus, mas vocês excluídos" (Lucas 13:24-28 NVI).
Isso me faz ter pena dos que se dizem seguidores de Cristo mas se colocam, na prática de fé, fora de uma festa que Jesus faz e fará com os excluídos.
Esta noite eu sonhei com Marco Feliciano. Por alguma razão o sonho me conscientizou de que ele, como opressor, também precisa ser libertado da relação de opressão.
Em algum momento, eu dizia no sonho que estenderia a mão da comunhão a Feliciano, não porque concorde com ele, mas porque ele precisa ser libertado da religião doentia em que se entranhou. Uma religião de poder - não no sentido espiritual, mas político mesmo.
Feliciano e similares fazem tantas coisas em nome do Senhor, mas estão presos na sua própria religião, incapazes de entender o jejum que Iahweh escolheu, incapazes de ver que são os que eles perseguem que festejam com Jesus, enquanto ele e seus pares vivem seus infernos pessoais fora do banquete da salvação com Jesus.
A opressão é uma relação. Quando nós promovemos a libertação, libertamos oprimidos e opressores de seu peso.
O Reino de Deus deveria ser lugar para LGBTs e Felicianos. Por enquanto, tem sido lugar só dos primeiros.

19.6.15

Herdeiros do Reino de Deus

Os dogmáticos forçam a barra das Escrituras para encontrar uma unidade impossível de encontrar.  
Houve uma dimensão existencial que me fez refletir acerca da homossexualidade e mudar de ideia, ao longo do tempo, acerca de sua relação com a vida de fé em Cristo. Se antes eu tinha certeza de que o homossexual estava em pecado, foi a experiência de encontrar irmãos que sinceramente sofriam porque não podiam deixar de ser quem eram que me fez refletir: "isso não pode estar certo: a igreja não pode ser um espaço de opressão e sofrimento". E a partir disso, comecei a repensar a questão.
Uma das primeiras coisas que entendi é que há problemas na visão dogmática sobre a Bíblia que se implicam na questão da homossexualidade.
Eu me pergunto se os dogmáticos que enviam os gays ao inferno não são capazes de perceber o problema essencial que sua leitura possui.  Porque se forem verdade textos como 1 Coríntios 6.9-10 ("Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? Não se deixem enganar: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus."), o que se estará admitindo é que há pecados que nos levarão ao inferno independente da graça de Jesus. Isso é outra forma de afirmar um tipo de salvação que depende de nossas obras. É admitir que há práticos, atos, comportamentos que são mais poderosos que o Jesus que nos salva. 
Não adianta falar em pecado reiterado, em falta de arrependimento ou coisas similares porque não é sobre isso que fala o texto. O texto diz que não estarão no Reino de Deus esses aí, independentemente de seu arrependimento, de sua luta por mudar, de sua consciência.  E não são apenas homossexuais na lista: os perversos - inclusive os que fazem uso da religião para as suas perversidades; os adúlteros - inclusive aqueles que desejam no coração, que Jesus já dissera que adulteram também. 
Se o texto de Coríntios for verdadeiro, não tem nada que possamos fazer. Não iremos ao Reino de Deus porque mentimos, porque somos avarentos, porque falamos mal de outras pessoas. 
Sabe aquele cristão santinho que vive dizendo na Internet que o filho de Lula é um megaempresário? Se tomarmos a sério o texto de Coríntios, não tem o que ele possa fazer: está perdido!
Mas o santinho acima só se lembra da parte do texto que fala dos gays, né?
***
De todo modo, isso não faz o menor sentido.  Não faz o menor sentido, no horizonte do Novo Testamento, considerar esta afirmação como uma verdade irretocável.
Podemos lembrar o próprio Paulo quando considera a dimensão e o impacto da salvação em Jesus na carta aos Romanos: "Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus, porque por meio de Cristo Jesus a lei do Espírito de vida me libertou da lei do pecado e da morte.

Que diremos, pois, diante dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não nos dará com ele, e de graça, todas as coisas? Quem fará alguma acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? Foi Cristo Jesus que morreu; e mais, que ressuscitou e está à direita de Deus, e também intercede por nós. Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está escrito: “Por amor de ti enfrentamos a morte todos os dias; somos considerados como ovelhas destinadas ao matadouro”. Mas em todas estas coisas somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor." (Romanos 8:1-2, 31-39)
Além desse, podemos lembrar da carta aos Efesios e sua doce afirmação no capítulo 2 de que somos salvos pela graça e não por obras.
***
O dogmático tem de escolher se é salvo pela graça e nada, de modo nenhum em tempo algum, pode afasta-lo dessa salvação ou se avarentos, mentirosos, caluniadores e até homossexuais estão condenados a viverem no inferno.
Esses textos não se reconciliam.
***
A partir da dimensão existencial do sofrimento amargo imposto pela religião e pela igreja contra irmãos e irmãs homossexuais que não podiam deixar de sê-lo e eram confrontados com a pregação dogmática que lhes punham condenados, que comecei a refletir. E percebi logo que esse discurso fere a essência do evangelho e da própria teologia que afirma que não são nossos pecados que nos condenam mas aquilo que fazemos de Cristo. Em outras palavras, a teologia ortodoxa diz que somos salvos pela fé em Cristo, mas que isso não nos faz deixar de sermos pecadores. Assim, mesmo salvos, somos pecadores.  E a partir de então nossos pecados não nos condenam porque nenhuma condenação há para os que estão em Cristo. 
Vê como não tem sentido, no escopo dessa teologia, a crença do texto de Coríntios de que aqueles pecadores estão condenados? As duas ideias não se complementam nem podem ser conciliadas.
Nesse instante percebi, e isso foi libertador, que a homossexualidade de ninguém é capaz de condená-lo já que não pode ser maior que o amor de Deus e que sua salvação em Cristo.  Logo, os gays têm seu lugar na igreja.
A partir disso, até deixar de acreditar que a homossexualidade é pecado, é outra história.

18.6.15

Em Deus mas sem Deus

Antes da modernidade, uma fé em um Deus Todo-Poderoso, determinista, absoluto, fazia todo sentido. Aí veio a modernidade que trouxe consigo um aprofundamento do secularismo.
Se antes, se cria no theós do teísmo, o iluminismo nos trouxe um deísmo ateísta, que negava a possibilidade de um deus todo-garantidor e pôs em seu lugar um que deu corda no mundo, estabeleceu as regras do jogo e deu o pira.
O ateísmo, claro, conforme o conhecemos hoje era a tendência natural de tal postura. Ele, associado a um profundo secularismo.
Por isso teólogos como Dietrich Bonhoeffer e Roger Lenaers, em tempos diferentes, entenderam que um homem que usa um interruptor para acender a luz de casa - ou a Internet para se comunicar à distância, indo até o mais longíquo rincão - não pode acreditar no deus que pregam os teístas.
Não faz mais sentido.
Uma fé relevante, como dizem os dois que citei acima, é aquela que aprende a viver em Deus sem Deus - em um mundo que não tem em Deus na cadeia causal do mundo. Porque o mundo já não cabe numa cadeia causal em que caiba Deus.
Vou dar um exemplo. Hoje pela manhã enquanto lia a Bíblia percebi com clareza como fazia sentido pensar em um deus todo-interveniente quando parecia que tudo fora criado para nós, humanos. O mundo era absolutamente finito, o céu era uma limitada toalha jogada sobre nossas cabeças, que andávamos em um plano mundo da terra - e com um fim logo ali. Era claro que esse mundo só podia existir em nossa função, a única espécie inteligente e com autoconsciência a coexistir nesse mundinho.
Mas hoje nosso mundo é muito maior. Entendemos o tamanho da nossa insignificância e podemos ter certeza de que o céu acima de nossas cabeças não foi estendido para nós. Como diria Cortella, somos um indivíduo entre mais de 7 bilhões, de um pequeno planetinha, rodando em torno de uma pequena estrela na periferia de uma galáxia com outras bilhões de estrelas - uma galáxia, por sua vez, que é uma entre bilhões. Quando era um tapete, havia sentido pensar que ele fora estendido para nós. Mas esse universo virtualmente infinito não pode ser pensado a partir de nosso ponto microscópico dentro de si.
Uma fé relevante não pode esquecer isso - e logo precisa ressignificar toda uma visão mítica e teológica dos séculos anteriores, não só na leitura do texto bíblico como também nas suas respostas teológico-religiosas.
Mas a fé hegemônica no cristianismo, ao menos no brasileiro, é ainda teísta pré-moderna. Eu ia dizer, por fim, que é essa fé teísta pré-moderna que nos arrasta para o fundo do poço do conservadorismo no Brasil. Não é à toa que o crescimento de Malafaias e afins se confunde com posturas cada dia mais medievais entre nós.

9.6.15

Cruzes

A Cruz era a execução de um sujeito subversivo que se levantou contra o poder de Roma, afirmando-se Messias, e contra o poder do Templo, assumindo o amor e a comunhão com os excluídos (prostitutas, publicanos, pecadores). A cruz aponta um Deus que se fez um de nós encarnando-se no mais excluído dos seres humanos, denunciando a opressão, a violência, a morte e o poder - fosse da religião, fosse das estruturas estatais. 
A Cruz fez do Deus cristão o mais abjeto dos seres.
Por isso, a Cruz foi bem representada na crucificação da transexual.
Qualquer um que fale diferente não entendeu o evangelho do reino de Deus anunciado por Jesus. 
Mas, curiosa confirmação das palavras, são os religiosos opressores e repressores que mais se sentiram atingidos. Porque na analogia da cena bíblica, esses são os que gritam "crucifica-o"!

Conversões

A gente passa por algumas conversões na vida, que podem mexer um tanto mais ou um tanto menos conosco.
Uma radical se deu em 1996 comigo quando deixei de crer como um espírita e encontrei sentido em uma versão do evangelho de Jesus que ouvi, naquela ocasião, na Igreja Presbiteriana Independente.
Já disse aqui: hoje olho a forma como eu cri naqueles primeiros anos e me apiedo de tanta repressão, opressão, tradicionalismo. Nem acompanhar uma canção com palmas me era possível - imagine as coisas que hoje eu creio.
Outros momentos de conversão se deram: vim, pela primeira vez, para Fortaleza fazer seminário em 2001. Antes disso, estive alguns meses à frente da congregação da IPI em Pajuçara. Experiências de conversão.
Elas foram se tornando mais aprofundadas com o passar do tempo.
Em 2011, comecei uma paquera teológica com Ricardo Gondim e a Igreja Betesda. O processo se acentuou entre 2013 e 2014. Eu me reencontrei nesta comunidade de fé. Aqui em Fortaleza tenho tido ricas experiências andando com esse povo que pensa uma fé contemporânea de maneira adulta e em busca da maturidade e autonomia.
Estava lembrando isso por um fato que contava a um amigo no sábado. Em 1996, ao dizer que "queria receber Jesus como Salvador", optei por uma religião da qual desconhecia a teologia, formulações, crenças básicas. Fui doutrinado e até pensava, de vez em quando, que cria como um presbiteriano porque havia me convertido em uma igreja presbiteriana - como se me fosse possível crer de maneira diferente da que cria então.
Caminhei muitos anos até me reencontrar na comunidade onde estou hoje. Dessa vez, foi tudo absolutamente diferente: quase duas décadas de vida eclesiástica, muita leitura teológica, experiências em eventos de reflexão, mestrado, doutorado, seis anos de estudos de teologia. A minha escolha não foi afetivo-emocional. A minha escolha foi teológica: assumi a comunidade Betesda como a minha comunidade porque encontrei ali uma forma de viver e pensar a fé cristã de maneira que me pareceu relevante, significativa e extremamente valiosa.
Não foi um adolescente que encontrou a fé na vida da igreja: foi um adulto, homem, maduro. Tanto que primeiro essa foi a minha experiência. Mas veio a ser também a experiência de Kênia. Não cabemos em outro espaço. A fé em Cristo que compartilhamos, compartilhamos na forma, na crença, nas propostas, nos sonhos, nos planos, nas proposições da Betesda.
Não chegamos aqui como neófitos: chegamos aqui como buscadores de uma fé madura que julgamos ter encontrado entre as irmãs e os irmãos dessa comunidade.
(Se cria no passado na relevância de uma mensagem evangelística e na conversão pessoal através da confissão de Jesus, hoje creio no evangelho do Reino nos impulsionando à vida, vida verdadeira, intensa, desalienada, comprometida. Desse modo, compreendam, falo de ter recebido Jesus como Salvador apenas para ressaltar o modo como cria naqueles dias. Jesus é o Salvador independentemente se eu confesso isso ou não. Aliás, o confessar não significa nada no que se refere à minha vida e ao sentido do evangelho nela. Mas isso é outra conversa).

4.6.15

A vontade de Deus é amar

Como vejo a vontade de Deus hoje?
Para mim, uma possível analogia seria o impulso de uma energia empurrando o mundo na direção da vida. 
Desse modo, não determina, mas é um vetor que impulsiona mais vida no mundo. Você pode resistir, pode lutar contra, pode decepcionar.
Nesse sentido, é uma intenção, um projeto, um plano de vida para cuja realização depende de nossa ação. Somos livres para participar ou não porque o amor só é amor se os amados e o Amante são livres - se o amado puder frustrar o Amante, se o Amante estiver disponível para ser afetado pelos amados, se assim o Amante puder ver seus planos de amor serem frustrados pelos amados.
Mas há esse impulso pela vida. Como que gravado no código de programação do Universo e da Vida. Como meu genótipo que é capaz de definir elementos essenciais de minha vida, saúde, mente, ideias, mas que não é definidora absoluta de minhas escolhas e de quem eu sou. O que sou não é definido pela programação dos meus gens, ainda que eles sejam essenciais nisso. Sou condenado à liberdade de escolher e esse elemento é o que melhor me define como um sujeito que intenta ser livre e autônomo. 
De igual modo, há uma energia que faz a existência ser cada vez mais complexa. A vida inteligente existia potencialmente na singularidade de onde explodiu o Big Bang. Nossa existência inteligente só é possível porque existia potencialmente ainda antes mesmo da existência do cosmos.
Parece que a vida - e a vida inteligente, a consciência, é o intuito do vetor que conduz o universo até o seu fim.  Um vetor que orienta mas que não submete - o acaso explode, um feixe de raios Gama decorrente de uma explosão estelar pode vaporizar nosso mundo ou outros mundos pondo fim a um processo evolutivo que faria brotar vida e civilização ou destruir toda uma civilização como a nossa. E isso não porque fosse vontade de Deus, mas porque o acaso e o infortúnio são possibilidades na história desse cosmos.
Um cosmos que é caótico, mas que se reorganiza. Um cosmos onde consciências se dirigem umas a outras e que fazem brotar o amor. O Amante nos amou para que pudéssemos aprender a amar - ainda que tudo isso não seja mais que linguagem antropomórfica. 
Um dos filmes mais tocantes que vi recentemente foi "Interestelar". E ali há uma proposta: a energia mais poderosa do universo, aquela que é capaz de transpor as barreiras do espaço-tempo, é o amor. 
A vontade de Deus é o Amor.

2.6.15

Inferno e fim do mundo

Mateus 13 traz algumas parábolas que falam sobre os injustos sendo lançados "na fornalha ardente" no "fim do mundo" onde "haverá choro e ranger de dentes" (joio e rede). 
Sou simpático à ideia de que tal fim do mundo ocorreu na crucificação de Jesus. A cena descrita nos sinópticos de trevas, escuridão na terra, terremotos e mortos voltando à vida combina com aquilo que os profetas escatológicos do Antigo Testamento anunciavam sobre o Dia do Senhor, o fim do mundo.  
Não dá, no entanto, para aprofundar a questão aqui. Cito-a para ponderar que, assim sendo, o inferno dos que rejeitaram Jesus seria uma condição existencial que se deu no momento em que Jesus morreu e ressuscitou e estes, injustos, foram mantidos de fora da esperança e da vida do Ressurrecto. 
Viver sem a experiência da ressureição e da vida é viver o inferno na terra. Ali, longe da graça. Ali, onde haverá choro e ranger de dentes.

22.5.15

Uma nova fé

"Setenta semanas estão decretadas para o seu povo e sua santa cidade, como forma de conter a rebelião, dar fim ao pecado, arrancar o crime pela raiz, estabelecer justiça para sempre, cumprir a profecia e ungir o Lugar Santíssimo" (Daniel 9. 24)

As Escrituras estão cheias de narrativas sobre um tempo desértico na vida os fiéis. Quarenta anos de um povo liberto pelo deserto a caminho da terra prometida até que toda uma geração teimosa morra, 20 anos na vida de um Jacó até que ele retorne para casa mudado em Israel, 40 dias de jejum e tentação para Jesus antes do ministério, Paulo sozinho no deserto da Arábia antes de se voltar para a igreja.
A ideia de um tempo de comprometimento a fim de experimentar um processo de, poderíamos dizer, conversão, é cara nas Escrituras. 
O texto de Daniel tenta reinterpretar a profecias de Jeremias acerca dos 70 anos de exílio babilônico que preconizou.
No fundo o que está em questão é a necessidade de um tempo de descida ao [fundo do] poço a fim de matar um determinado deus e religiosidade a fim de nos encontrarmos com uma nova espiritualidade que nos apresente um Deus mais vivo, relevante e misterioso para o nosso tempo.
Penso ter sido essa experiência de morte de deuses e espiritualidades datadas, comunitária e individualmente, que está por trás desses tantos relatos sobre tempos de deserto nas Escrituras. O tempo da dúvida, da crise, do poço parece ser uma constante na vida do povo e do fiel. Mais que isso: parece ser fundamental. A reinvenção de uma fé mais livre e relevante passa pela experiência de matar quaisquer formatos anteriores, quaisquer concepções de divindidade e religiosidade que não nos digam mais respeito. Antes de uma fé mais honesta precisamos da morte de uma fé que já não responde mais às angústias do tempo presente. 
Esse é o deserto.
Há quase três anos vivo dividido entre Fortaleza, onde trabalho, e Natal, onde mora minha família. Mesmo antes disso comecei a descida, mas ela foi ainda mais radical até me parecer ter tocado o fundo do poço depois de ter vindo a Fortaleza.
A caminhada de volta, em uma nova fé, começou a partir daí. O meu deus morreu bem morto e uma nova fé começou a emergir, aqui e em contato com os irmãos que me hospedaram e com a igreja que me abrigou. 
Agora que a possibilidade de retorno a Natal se evidencia (após vencermos na justiça federal em primeira instância processo que movemos por uma permuta com colega da UFRN), sinto que cheguei aqui um Jacó, lutei com Deus e com minhas incredulidades e posso voltar para a minha terra um Israel. 
Como foi a experiência de Jacó, como foi a experiência do povo no deserto ou no exílio, encontrei aqui, no meu deserto e exílio, um Deus pelo qual vale a pena viver.

21.5.15

Ossos secos e uma nova vida espiritual

"Então ele me disse: 'Profetize a estes ossos e diga-lhes: Ossos secos, ouçam a palavra do Senhor! Assim diz o Soberano, o Senhor, a estes ossos: Farei um espírito entrar em vocês, e vocês terão vida'". (Ezequiel 37:4-5 NVI)
Pensava sobre esse conhecido texto de Ezequiel 37 hoje.
Conhecidíssimo texto, pregado tantas vezes em contextos de avivamento ou de experiências carismáticas, mas que também pode nos convidar a refletir sobre outras coisas.
Tenho conversado - e, por isso, refletido - sobre a vida religiosa comunitária e individual dos cristãos nos dias atuais. É como se, de um lado, houvesse uma crescente desilusão contra a religião dos pais que não responde mais às demandas e angústias da contemporaneidade, e de outro se buscassem saídas e alternativas a tal situação.
Parece o contexto de Ezequiel. Ele era um profeta do exílio, levado à Babilônia em uma das primeiras levas de judeus, antes mesmo da destruição do templo de Jerusalém e da deportação final. 
Desde o início de seu livro ele vai desenhando um cenário terrível para os judeus e sua religião. Lá no capítulo 8, por exemplo, ele é levado em uma visão a Jerusalém, até o templo, e por trás de um buraco cavado na parede vê toda sorte de abominação religiosa e espiritual, denunciando uma religião que é usada pelo poder para submeter o povo, mantendo um determinado discurso moral e ascético que esconde todo tipo de sujeira é mentira manipulativa em detrimento dos fiéis. Ovelhas, afinal, sem pastores.
Essa religião que promovia escravidão, alienação e dominação se esmigalhou com a destruição do templo e o exílio sob Nabucodonosor. Sedecias, o último rei, tenta fugir ao cerco do rei babilônico, é capturado e, antes de ter seus olhos vazados e levado prisioneiro, assiste à decapitação de seus filhos.  O templo queima. A Arca se perde para sempre.
Ezequiel viu isso: ele viu a Glória de Iahweh deixando o templo e em seguida Jerusalém. Era o fim dessa religião dos pais.  Ela não serve mais, ela não responde mais, ela não presta mais.
É no contexto da restauração que surge a profecia do vale dos ossos secos.
Ela tem duas etapas. Primeiro, uma restauração formal, que gera corpos a partir de ossos, mas sem vida.
Em seguida, Ezequiel profetiza para que o Espírito venha e traga vida aos corpos.
Quando leio esse texto em dias de decepção, mágoa e frustração contra as igrejas e, de outro lado, dias de igrejas que promovem a si mesmas mas nada do evangelho libertador do Reino, me identifico. E para mim o texto aponta um caminho de dois passos para uma nova espiritualidade e uma nova vivência de fé comunitária.
Primeiro: é preciso cria uma nova forma. A forma antiga, que aliena, mata, sufoca, é um vale de ossos secos. Mesmo que o vale nem se perceba assim. 
Por que as pessoas se frustram e abandonam a fé? Porque procuram vida relevante e só encontram ossos secos em nossas comunidades. Ossos secos, que batem uns contra os outros, são capazes de fazer muito barulho e chamar a atenção. Mas não têm vida nem representam nada na vida.
Segundo: uma forma correta sem a vida infundida pelo Espírito também não serve muito bem porque é vazia. É preciso que o Vento sopre.
E que vida o Espírito traz? Compromisso com a vida. Fruto do Espírito. Testemunho do Reino. 
Diz, na versão da Bíblia A Mensagem, o texto de Gálatas sobre o fruto do Espírito: 

"O que acontece quando vivemos no caminho de Deus? Deus faz surgir dons em nós, como frutas que nascem num pomar: afeição pelos outros, uma vida cheia de exuberância, serenidade, disposição de comemorar a vida, um senso de compaixão no íntimo e a convicção de que há algo de sagrado em toda a criação e nas pessoas. Nós nos entregamos de coração a compromissos que importam, sem precisar forçar a barra, e nos tornamos capazes de organizar e direcionar sabiamente nossas habilidades".(Gálatas 5. 22-23)

Outro texto que pode nos dar pistas do que podemos esperar da vida do Espírito Santo em nossas vidas é Isaías 61:

"O Espírito do Soberano, o Senhor, está sobre mim, porque o Senhor ungiu-me para levar boas notícias aos pobres. Enviou-me para cuidar dos que estão com o coração quebrantado, anunciar liberdade aos cativos e libertação das trevas aos prisioneiros" (Isaías 61:1 NVI)

Como disse pregando domingo, o Espírito não vem sobre nós para nos tornarmos super-homens todo-poderosos. Ele vem para nos dar integridade de vida para o serviço como testemunha - um mártir que vive pelo que crê - do Reino de Deus.

É nessa dimensão que vejo também a visão de Ezequiel 47, do rio que corre desde o Novo Templo levando vida ao deserto e até restauração ao mar Morto: o Rio da Vida corre a partir de nós nessa nova dimensão de vida de fé espalhando vida, libertação, transformação a partir de nós.
Qualquer nova fé que atenda às demandas e angústias contemporâneas deve, a meu ver, repercutir da experiência comunitária para a transformação do mundo, levando a toda parte essa vida. E de minha parte percebo que esse Vento já está soprando mundo afora.

20.5.15

Tão profundo

Ontem dei uma entrevista a Nathanael, cujo conteúdo em geral deixarei privado. 
Mas, acho, foi uma das primeiras vezes que verbalizei alguns aprendizados recentes sobre meu amor por meu pai e minha relação com ele.
Já disse algumas vezes que o ter me tornado pai mudou a minha compreensão acerca de meu pai. Em resumo, se antes eu me lamentava por ter perdido tantos momentos de intimidade com meu pai por sua ausência, depois de Alice passei a lamentar por meu pai ter perdido tantos momentos de paternidade comigo. 
Outra coisa que entendi nos últimos anos é que, para alguém do tempo e da luta de meu pai, amar era ser clandestino. Quer dizer: fazia parte das consequências de sua luta contra a ditadura e por mais justiça manter as pessoas mais importantes e frágeis de sua vida afastadas - assim como ele fez ao optar pela clandestinidade em 69 e, depois, quando nem todo mundo sabia ou soube de suas ações no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. A clandestinidade protege quem realmente importa na vida do revolucionário.
Essas percepções ajudam no meu atual mergulho na dimensão espiritual da vida porque me ajudam a compreender de uma maneira nova minhas relações com o Deus que é Pai.
Se eu aprendo que o Pai representa a Lei e os limites dados aos filhos na infância, aprendo que seu objetivo é que esses filhos não aprendam a obedecer cegamente, mas encontrem amor e saibam pensar. Esse é o meu desejo como pai de Alice. E vejo ser essa a caminhada de Deus, o Pai, conosco.
Se há infância da fé, se somos crianças espirituais, precisamos de um Pai que seja legislador de nossas vidas. Até que passemos por aquela experiência de matar o Pai sobre a qual falei outro dia.
A partir desse momento, a gente volta a uma experiência com o Pai, mas que é bem diferente daquela de antes. 
Assim como posso reencontrar meu pai em uma relação de amor, amizade, companheirismo, que me impacta e me marca de uma maneira ainda mais profunda, depois de abandonar essa fé infantil e legalista, matar o Pai, encontro uma espiritualidade ainda mais rica e profunda, uma relação mais amorosa e honesta, um coração mais inflamado e experiências mais marcantes e [e]ternas.
Mais poesia, mais beleza e amor.
"É tão profundo, tão imenso e cobre-nos
É furioso, poderoso e abraça-nos
Só Ele pode devolver a vida aos corações"
https://youtu.be/zOc855DIZyk

14.5.15

O lugar da esperança e da incredulidade

“Se podes?”, disse Jesus. “Tudo é possível àquele que crê”. Imediatamente o pai do menino exclamou: “Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade!” (Marcos 9:23-24 NVI)

Estava pensando sobre a reflexão de Tomás Halík acerca do ateísmo e da [falta de] fé e me veio à mente o relato do menino epiléptico que Jesus encontra logo que desce do monte da transfiguração.
Como os discípulos não conseguiram curá-lo, o pai se aproxima de Jesus para pedir que, caso possa, cure seu filho.  E o diálogo segue conforme cito acima.
Esse texto inteiro, frise-se, pode nos ensinar sobre o lugar da incredulidade, da incompreensão e da incapacidade na nossa vida de seguidor de Cristo. Mas queria destacar esse aspecto da incredulidade.
Ontem conversava com uma amiga sobre [mais] um modelo de ganhar dinheiro derivado de pirâmides. Ela comentou: "Melhor que doar para campanhas políticas". Retruquei. Em resumo, disse o que penso: "A gente só investe no que acredita".
Aquele pai decide investir o pouco que crê naquele em quem acredita, esperando que Ele possa ajudar com sua falta de fé.
O que esse relato me fez pensar é que ao investirmos no que cremos não o fazemos fundados em certezas. O investimento é feito na dimensão da incerteza, repleto de dúvidas, cheio de insegurança e medo. A crença aqui não se baseia em uma fé triunfante, uma fé que é certeza. Cremos com base na esperança. Ao afirmar que cremos estamos dizendo de nossa esperança de que tudo dará certo - mesmo que seja, como Paulo diz acerca de Abraão, um esperar contra a esperança.
Só investimos no que acreditamos - isto é, no que temos esperança de que funcionará. É como o casamento, por exemplo. Não temos, nem podemos ter, nenhuma certeza de que dará certo. Nossa expectativa é a esperança de sucesso. É essa esperança que justifica todo meu investimento em uma relação.
A esperança, portanto, abre o espaço para a dúvida, para a descrença, para a incredulidade.  Não somos super-homens e super-mulheres que têm absoluta certeza de que serão capazes de tudo em nome de sua fé. A fé titubeia, ela fraqueja, ela falta. Chega aquele momento em que a alma se encontra sem fé. A única chance de seguir em frente, a única coisa que motiva nosso investimento na vida, é a esperança. 
Aquele pai esperava, ainda que sua fé fosse pequena ao ponto de pedir ajuda quanto a sua falta. Ele esperava de Jesus e esperava em Jesus.
Algumas outras coisas me despertam atenção neste texto. Primeiro, e mais importante, é que todas aquelas pessoas - e, em particular, os discípulos - estavam ao lado de Jesus. Mais que isso: Jesus e três deles acabaram de passar pela experiência da transfiguração no alto do monte. É, portanto, natural que nós tenhamos, como leitores, a expectativa que todas aquelas pessoas estivessem repletas de uma fé que fosse certeza absoluta. No entanto, todo o relato é o relato sobre a falta da fé: Jesus esbraveja contra, pasme, os discípulos que foram incapazes de curar o menino: "Respondeu Jesus: 'Ó geração incrédula, até quando estarei com vocês? Até quando terei que suportá-los?'. (Marcos 9:19 NVI) 
O texto é sobre falta de fé: dos discípulos, do pai. Nossa. A falta de fé, a incredulidade, o ateísmo é parte de nossa vida. 
Em "Paciência com Deus" diz Halík: "A fé só poderá vencer a descrença abraçando-a".  Ele diz ainda que ateísmo deve ser visto não como uma mentira mas como uma verdade incompleta.  E complementa: "O ateísmo constitui uma útil antítese do ingênuo e vulgar teísmo - mas é necessário dar mais um passo para a síntese e para a fé madura".
Enquanto isso, caminhamos na esperança. É ela que nos motiva a investir em nossas crenças - entre elas, de que a fé vale a pena, de que o amor é o melhor caminho.
“Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade!”

12.5.15

Matar o Pai

Para a psicanálise, a partir da análise do mito do Édipo Rei, quem não matar o pai simbolicamente permanecerá infantil a vida toda. 
Lembrei-me disso na leitura da parábola do filho pródigo em Lucas:
"E Jesus disse ainda: — Um homem tinha dois filhos. Certo dia o mais moço disse ao pai: “Pai, quero que o senhor me dê agora a minha parte da herança.” — E o pai repartiu os bens entre os dois". (Lucas 15:11-12 NTLH)
Quando pede sua parte na herança do pai, o filho, simbolicamente, mata o pai. Herança é algo que é dado como testamento, após a morte. É, então, como se o filho dissesse ao pai que a partir daquele momento vai considerá-lo como morto.  Isso ajuda, na parábola, a explicar toda a relutância que o filho tem, após gastar todos os bens, para voltar à casa do pai. Aliás, isso também ajuda a explicar porque ele acha que o único papel que lhe caberia ali, no retorno, seria o de um empregado.
Mas pensemos na morte simbólica do pai como ato fundamental para que o sujeito alcance a maturidade. O pai representa a lei. Sob seu domínio, não podemos ser outra coisa que não heterônomos: ou seja, somos guiados pela lei de outro. Ser maduro, ser adulto é o mesmo que ser autônomo: ou seja, é reconhecer em si a lei, o princípio ético para a sua ação no mundo. E se responsabilizar - quer dizer, ser capaz de dar resposta - por isso.
Ai eu volto para a parábola, na qual o pai é uma figura de Deus. É preciso matar o pai. É preciso matar Deus. O filho só consegue experimentar a realidade de uma vida autônoma com Deus, uma vida plena da graça e do amor perdoador do Pai, depois que O mata, usufrui de sua herança. É nesse retorno para o Pai, já morto simbolicamente, que o filho encontra sua fé e uma nova e revigorante relação com o Pai.
Interessante também pensar que a parábola foi contada, como sabemos no início do capítulo 15 de Lucas, contra os fariseus porque estes criticavam Jesus por andar com pecadores.
Os fariseus estavam sob a Lei. Sua fé era infantilizada como a do irmão que ficou - aquele que não matara simbolicamente o pai, ou seja, a Lei. Infantis, chateiam-se enormemente contra aquele irmão que, matando o pai e vivendo dissolutamente, reecontrou-se com ele em uma nova forma de relacionamento, fundado no amor, com liberdade e autonomia, como convém a adultos.
Na minha experiência de fé tenho aprendido que, como o filho pródigo, temos de matar o Pai para encontrarmos uma nova fé madura e autônoma. Tenho encontrado muitos irmãos e irmãs que, passando pela mesma experiência, ressignificaram sua fé longe de heteronomia escravizante. Ousaram romper com a fé infantil como a dos fariseus denunciados por Jesus. 

11.5.15

A vida é breve


"Vocês nem sabem o que acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa". (Tiago 4:14 NVI)
Pela manhã soube do falecimento de Marcio Barros, um dos melhores pregadores que eu já ouvi na vida.
A vida é um presente. A vida é o presente também.
Márcio se foi deixando uma enorme legião de amigos saudosos, familiares marcados e viúva e dois filhos extremamente machucados.
Sua vida foi dom para aqueles que com ele conviveram. Presente.
Mas é inevitável lembrar que a vida é o presente, o momento - nem o ontem, nem o amanhã.
A vida é o breve instante do agora, eternizado pela força do amor.

9.5.15

Sem destino

Esta semana, meu amigo Thiago de Goes perguntou em um grupo de whatsapp do qual fazemos parte o que nós diríamos a nós mesmos se pudéssemos voltar 20 anos no tempo e nos encontrarmos com nosso eu adolescente.
Respondi: "Você não é um cadáver".
Há 20 anos costumava falar assim quando me acusavam de ser intransigente. Para justificar minha defesa apaixonada por alguns pontos, dizia, no entanto, que minha posição não era imutável. "Não sou um cadáver para ter rigidez cadavérica", complementava.
Dizer isso hoje para o meu eu de 20 anos atrás tem outro significado muito distinto. Se há 20 anos eu queria dizer que minhas posições não eram imutáveis, hoje eu gostaria de me dizer que não era um morto, que valia a pena viver.
Descobrir a vida provoca dores. É engraçado imaginar que ao descobrir que não se tem rigidez cadavérica, o corpo, rígido, resiste na forma de torcicolos, curvaturas da coluna, dores ciáticas, etc. O corpo que se acostumou a se ver como morto sofre dores quando começa a se encarar vivo diante da vida.
Há 20 anos eu era preso no destino. E o destino mata a vida. Era um cadáver e não sabia.
Não deve ter sido coincidência que uma das músicas que dançamos na abertura dos jogos internos em 95 no Neves começava afirmando que "a cigana leu o meu destino" e ecoava a pergunta: "o que será o amanhã? Como vai ser o meu destino?"
O destino é essa prisão. Ele me condiciona a encarar a dor do passado como inevitável e consequência de meus atos conforme a sina e me faz ver que o futuro já existe, já foi escrito, vai acontecer não importa o que eu faça. Diante do destino, o meu corpo é cadáver. Diante do destino, a rigidez da vida é cadavérica e não importa o ato - o futuro já aconteceu.
Uma vida assim não é vida. O corpo é morto diante disso. Não há esperança, mas somente espera pelo que já está destinado na sina.
Só é possível esperançar quando se sabe que o futuro não existe. O futuro não está lá. O destino não está escrito. A vida não é sina.
Só é possível esperança, fé e vida quando vivemos o tempo presente. Quando sabemos que o futuro é construído pelos nossos atos.
Só é possível ser vivo, e não um cadáver, quando se sabe que o passado constitui minha pessoa, mas não é resultado de uma tragicidade inevitável. A dor, no passado e no presente, é para ser vivida. Viver com esperança é abrir mão de qualquer cinismo trágico, filho do destino, que acha que não há mais nada a fazer para se mudar a vida. Quando dói o infortúnio, o experimentamos plenamente - não fugimos dele nem tentando explicá-lo, nem tentando encontrar suas causas e razões, nem tentando tornar bom o que é, por si, mal e doloroso. Viver com esperança é sentir a dor sem se submeter à tragicidade da vida, é olhar o futuro de maneira crítica, mas positiva. É desejar construir o melhor. É caminhar rumo à utopia.
Tudo isso para mim só é possível quando entendo que o futuro não existe, quando não sou mais um cadáver, quando não me submeto mais a qualquer rigidez cadavérica. Para caminhar livre do destino, preciso olhar com fé o passado, viver o presente e esperançar o futuro.

8.5.15

Fé e herança espiritual

Ao me converter em 1996 o mundo evangélico era notoriamente anticatólico. O anticatolicismo é fruto da nossa herança evangelística e missionária norte-americana do século XIX.
Pouco a pouco, ele foi se desmanchando para mim.  
Hoje, em um momento em que experimento o que Tomás Halík chama de "cristianismo de segundo fôlego" - uma redescoberta da fé que não é um regresso mas um passo mais profundo, sinto-me contemplado, abençoado e desafiado principalmente por autores católicos.
Seja a simplicidade profética de uma Jose Comblin, seja a mística ético-ecológica de Leonardo Boff, seja a espiritualidade profunda de Tomás Halík.
Halík, tcheco, foi descoberto por meu amigo pastor Mardes Silva. Deparei-me com dois de seus livros editados pela Paulinas de Portugal que Mardes comprou: A noite do confessor e O meu Deus é um Deus ferido.  
Acabo de ler "A noite do confessor". Saio dessa experiência de leitura com a fé renovada e com uma sede por uma espiritualidade ainda mais profunda.
E sempre com a coragem renovada em falar de meus irmãos católicos fico pensando em como é a cabeça de uns tantos líderes e teólogos evangélicos que eu conheço que, lendo e aprendendo com padres e teólogos católicos, ainda consideram ser verdadeira à sua condenação ao inferno por idolatria.
E tal hipocrisia ou alienação não os condenam?
E quantos televangelistas ou representantes das bancadas políticas neopentecostais continuam tal discurso anticatólico sem perceber que na vida dos crentes que seguem o Papa Francisco o evangelho faz mais sentido e dá mais frutos que em suas próprias vidas?
A seguir, trechos que me inspiraram do último texto ("Cristianismo de segundo fôlego") da obra de Halík "A noite do confessor"